De que nos vale o Estado?

Os portugueses, durante esta aviltante tragédia, estiveram pouco mais que entregues à sua sorte.

É, principalmente, nos escombros da calamidade mais extrema que faz sentido questionar: de que nos vale o Estado? Entidade que reputámos de bem, com quem celebrámos por decreto de nascença um contrato social não escrito, que envolve direitos e deveres, garantias e obrigações. Esta é a questão filosófica que vai mordendo devagarinho a nossa consciência colectiva.

Obriga-nos a entregar-lhe quantias cada vez mais elevadas em dinheiro. Endivida-nos para pagar as suas gorduras e extravagâncias. Sujeita-nos a agoniantes filas de espera nos hospitais e presenteia-nos com a famigerada insuficiência de meios no tratamento da doença. Vota ao subdesenvolvimento múltiplas escolas sem recursos logísticos e humanos alocados para abrirem portas aos alunos. Não é, na maioria dos casos, amigo do investimento privado e da criação de oportunidades. Substitui as famílias em decisões fundamentais. Patrocina uma justiça morosa, ineficiente e tecnocrática. Usa as Forças Armadas e de Segurança como um penacho no chapéu do regime. Estimula o centralismo, pois a amnésia cosmopolita apagou-lhe a imagem do interior. Estende uma rede de segurança social quando não é precisa e retira-a quando é necessária. Nacionaliza as dívidas de bancos cujos lucros foram, ao longo de décadas, privados. Remunera as clientelas e os amigos do sistema de interesses. Divide-se em partes generosas pelos partidos acostumados ao poder. Transformou-se no habitat ideal para a corrupção e o conluio entre personagens sinistras que não desejaríamos vizinhas.

Esta é a caricatura que a percepção geral assume da relação truculenta com Estado, frustrada pelo incumprimento das expectativas depositadas em sucessivos governos. Será pedir muito que, em troca do que abdicamos em seu favor, o Estado possa, no mínimo, proteger as vidas dos cidadãos e colocar a salvo as suas humildes posses e/ou fontes de sustento das hecatombes? Um Estado que observa impotentemente, por duas vezes no curto espaço de quatro meses, a um país cercado pelas chamas, a 106 vidas humanas roubadas, aos incêndios consumirem milhares de hectares, prova que já não é capaz de salvaguardar a segurança dos seus cidadãos e o seu património. É um acto falhado e uma proclamação de falência. Fracassa rotundamente na sua função mais básica e primária de todas.

Se o secretário de Estado disse que as pessoas têm que se autoproteger, se a ministra afirmou que temos de ser mais resilientes a defender-nos dos incêndios, se o primeiro-ministro declarou que precisamos de habituar-nos a morrer nas chamas, se o Governo inteiro assume que não é capaz de proteger a integridade dos seus cidadãos e os seus bens, a pergunta que cabe colocar é a seguinte: o Governo, para além de não ter percebido nada do que se passou nestes últimos dias, serve para quê? É que os portugueses, durante esta aviltante tragédia, estiveram pouco mais que entregues à sua sorte, a lutar pela sobrevivência com o que tinham à mão, desabrigados de dispositivos de protecção. O povo desesperou sozinho, viu arder os pertences e morreu isolado pelas chamas.

A impunidade é irmã da imoralidade. A omissão reiterada de deveres fundamentais de auxílio, socorro e defesa das populações, por parte dos poderes públicos competentes, deve acarretar consequências políticas. O Governo decidiu seguir uma linha negligente, relapsa e irresponsável. Ao manter até às últimas instâncias uma ministra incompetente que brincava às nomeações a escassos meses da época crítica de fogos, ao evidenciar uma falta de humanidade crónica nas suas declarações ao país, ao recusar-se diligenciar no sentido de reforçar a sua capacidade máxima de prevenção e resposta à ameaça de acordo com as recomendações técnicas constantes de um relatório não lido e guardado na gaveta, ao escusar-se a retirar ilações da descoordenação ao nível da cadeia de comando da protecção civil, das deficiências nas comunicações e da insuficiência de meios de combate aos fogos, quebrou irremediavelmente o vínculo de confiança com as pessoas e será incapaz de restaurar a idoneidade do Estado. Designadamente na missão futura de apoiar e indemnizar as vítimas e liderar a reforma da floresta. Deve, portanto, sair pelo próprio pé ou ser convidado pelo Parlamento a fazê-lo. É a hora de dar razão à existência do Estado. Perderam-se pessoas, famílias inteiras, bens, lugares, memórias e sonhos. Nunca mais as encontraremos. No extenso inventário de desaparecimentos demos por falta do coração de quem nos governa. Se alguém o achar é favor entregá-lo à gente carente de esperança. No limite, pode não se ter perdido, porquanto nunca terá existido. Continuarão a viver com uma pedra no seu lugar vago. Ao menos essa não arde. Mas pesa-nos mais na revolta.

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