Os fogos e a apatia portuguesa

Temos um Estado que se demitiu do seu papel regulador e igualmente uma sociedade civil portuguesa “aparentemente apática”.

Há uma clara falta de cidadania na sociedade civil portuguesa, nomeadamente cidadania ecológica ou ambiental. Este ano, morreram em Portugal 107 pessoas em resultado direto de incêndios florestais, mais do que nos 16 anos anteriores. No entanto, fora da exaltação silenciosa das redes sociais não presenciámos até ao passado sábado manifestações na rua, não vimos protestos (mesmo depois de Pedrogão).

Na Galiza, no passado 16 de outubro, após os incêndios que mataram quatro pessoas, assistimos a manifestações de milhares de pessoas exigindo uma mudança na política florestal e a demissão do presidente da Junta da Galiza, Alberto Nunes Feijóo. Acontecimento que fez acordar os portugueses e que deu o mote à manifestação — “Portugal contra os incêndios” — usando as redes sociais.

Como disse Viriato Soromenho Marques, existe uma aparente apatia no que se passa em Portugal relativamente aos incêndios florestais, mas diria que essa apatia está, de certa forma, enraizada no pensamento português e advém igualmente de uma falta de sensibilidade ambiental e ecológica presente na nossa cultura.

Vemos responsáveis e dirigentes políticos a desviar a atenção da questão dos fogos apontando o dedo a incendiários ou à falta de cuidado da população. Assistimos há vários anos a uma falta generalizada do ordenamento florestal, à extensiva plantação dos nossos terrenos florestais com pinheiros e eucaliptos e, mais grave ainda, à conivência do Estado tanto com empresas privadas de combate ao fogo como de empresas de celulose.

Vemos um Estado que se retirou da equação e das responsabilidades, um Estado que gere apenas 2% da área florestal portuguesa e que deixa o mercado livre para se auto-regular, como faria na teoria económica um “bom Estado capitalista”. Alan Greenspan, antigo presidente da Reserva Federal norte-americana, reconheceu passado demasiados anos à frente desta estrutura que “o mercado livre é incapaz de se auto-regular”. O mesmo se aplica, no caso português, às politicas de gestão florestal por parte do Estado. António Costa deverá agora reconhecer que o mercado não pode estar entregue a si mesmo e tem obrigatoriamente de ter o controlo e regulação do Estado.

Uma das primeiras medidas a ser tomadas deveria ser nacionalizar o combate ao fogo, como igualmente referiu Viriato Soromenho Marques. Devemos, por isso, voltar a ter soberania sobre o nosso território e o sistema de combate ao fogo não deve ser entregue a empresas privadas, que obviamente baseiam o seu sistema de negócio com os incêndios florestais.

Dentro das cinco práticas conhecidas para a sensibilidade ecológica (ecoliteracy.org) está o Princípio de Precaução, em todos os contextos de imprevisibilidade de consequências do impacto da atividade humana no ambiente. Este Princípio da Precaução não é obviamente usado no modelo de gestão florestal em Portugal, modelo este que privilegia o combate em vez da prevenção. Prevenção que passa, por exemplo, pela limpeza dos combustíveis finos ao longo do ano nas áreas de mato e floresta.

Temos, portanto, um Estado que se demitiu do seu papel regulador e igualmente uma sociedade civil portuguesa “aparentemente apática”. Uma apatia que se comprova numa falta de cidadania e preocupação com as questões ambientais, tanto do Estado como da sociedade civil. Um pensamento vincadamente meridional, de resto contrastante com o pensamento ecológico da Europa do Norte ou central. Viramos costas à floresta, ao interior, à agricultura, não limpamos os matos, não cuidamos das nossas terras. Paralelamente, medidas simples como fazer reciclagem, uma adoção de um modo de vida mais sustentável, ou por exemplo o voluntariado ambiental, quase não se fazem. Tudo em resultado de uma quase inexistente educação ambiental, que, no entanto, começa mais recentemente a dar passos em direção à mudança com as novas gerações. Mudança esta que passa imperativamente pela aposta na educação ambiental e aulas de cidadania nas escolas.

Na passada sexta-feira celebrou-se o Dia Internacional da Paisagem, uma iniciativa que visa celebrar a paisagem enquanto parte essencial dos ambientes humanos e sustentáculo fundamental da sua identidade. Lembremos então a paisagem e florestas portuguesas de hoje, consumidas pelos fogos, descaracterizadas, à base da monocultura, mas, acima de tudo, onde não podemos encontrar parte da nossa identidade.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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