Washington, Bruxelas, Pequim

Enquanto o Presidente americano “destrói à picareta a Pax Americana”, Pequim quer aproveitar a oportunidade para ocupar o espaço deixado vazio.

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1. Não é preciso ser um especialista para perceber a velocidade a que estão a mudar os equilíbrios do sistema internacional, que durou praticamente desde o fim da II Guerra, com as suas instituições multilaterais. A assinatura era americana com o apoio do mundo ocidental. O equilíbrio do terror entre os EUA e a União Soviética foi relativamente eficaz, abrindo as portas ao colapso, quase pacífico, do sistema soviético e à ilusão de um mundo mais integrado, mais livre e mais pacífico. O 11 de Setembro, com o seu impacte brutal na forma como a América olha o mundo, abriu uma nova era, expressa, primeiro, no unilateralismo americano e, depois, na ascensão de novas grandes potências fora do mundo ocidental. Pelo meio, houve a preocupante “revisão” russa da ordem internacional e o seu nacionalismo agressivo, que desestabilizou a vizinhança europeia, alterando pela primeira vez as fronteiras herdadas da II Guerra e da implosão da União Soviética. Hoje o debate deixou de ser sobre como o Ocidente democrático vai defender a ordem internacional que construiu, integrando nela os novos grandes actores mundiais que emergiram nas duas últimas décadas. Passou a ser sobre quem vai dominar um mundo cada vez mais em desordem.

2. Na semana passada, a Economist não hesitou em fazer a sua capa com o rosto de Xi Jinping, “O homem mais poderoso do mundo”. Xi é diferente dos seus antecessores a quem incumbiu levar por diante a estratégia de Deng Xiaoping, anunciada em 1979, que cortava com a era de Mao e decretava que a China tinha como objectivo enriquecer. Foi o tempo do “peaceful rising”, mantendo um “low profile” na cena internacional e dando total prioridade à economia. Os Estados Unidos foram-se adaptando a esta nova realidade, enquanto viam a economia chinesa prosperar graças à libertação controlada das forças do mercado, transformando a China na “fábrica do mundo”. A globalização acabou por revelar-se uma bênção para a China e não tanto para a América, permitindo tirar da pobreza extrema 400 milhões de chineses e criar uma classe média cada vez mais vasta e próspera, que dispensa quaisquer reivindicações políticas, para além das condições em que possa continuar a enriquecer. Não há manifestações na China contra a falta de liberdade. Há manifestações quando o governo não zela pelas condições de trabalho ou quando o TGV chinês que liga Xangai a Pequim sofre um descarrilamento numa das suas primeiras viagens, ou ainda quando os líderes locais são demasiado corruptos. Os EUA acreditaram (em parte) que o desenvolvimento acelerado da China acabaria por conduzi-la a uma ordem política interna mais democrática. Passaram, entretanto, 28 anos sobre o acontecimento que ia deitando tudo a perder. A 4 de Junho de 1989, o Partido Comunista ordenou um massacre contra os manifestantes, a maioria jovens, que ocupavam há meses a Praça Tiananmen em volta de uma cópia da Estátua da Liberdade, seguindo as pisadas das revoluções democráticas na Europa de Leste e das transformações profundas na União Soviética. O crescimento económico não parou. A China encontrou o seu lugar nos BRIC, que apostavam no crescimento económico e num lugar ao Sol nas instituições internacionais. Entrou na Organização Mundial do Comércio (2001). Tornou-se um grande parceiro comercial dos EUA e da União Europeia, acumulou títulos da dívida americana e uma montanha de divisas estrangeiras. Obama anunciou em 2011 o “pivô” para a Ásia-Pacífico, que se tornava cada vez mais o centro nevrálgico da economia mundial, até aí localizado sem rival no Atlântico Norte. Hillary Clinton criou uma espécie de cordão sanitário à volta da China, reafirmando aos pequenos e médios aliados que rodeiam o colosso chinês a garantia da sua segurança. A economia chinesa foi subindo rapidamente na cadeia de valor, subcontratando, ela própria, aos seus vizinhos a produção de bens de mão-de-obra não qualificada. Onde estamos hoje?

3. Basta olhar para a encenação do 19.º Congresso do Partido Comunista da China, que teve início no dia 18 em Pequim, para ver lá os sinais de uma nova mudança, porventura equivalente aquela que Deng representou. Não estamos a falar do regresso ao totalitarismo e do culto da personalidade que Mao impôs desde 1949, com milhões e milhões de mortos, vítimas da repressão ou da fome. Nada disto é hoje repetível num país que passou de miserável a segunda economia mundial. Estamos a falar da recuperação de velhos rituais que Xi adoptou para se coroar como o novo “imperador”, transferindo de novo para o Partido Comunista o poder essencial. A Economist sintetiza bem esta mudança: Deng chegou ao poder anunciando que o partido não podia estar sempre a interferir no governo; Xi está a fazer o caminho contrário. O 19.º Congresso será um teste importante. Mas essa não é a única ruptura. O Presidente chinês quer inaugurar uma “nova era”, fazendo da China uma grande potência global. Os media oficiais chamam-lhe “o pensamento de Xi Jinping sobre o socialismo de características chinesas para uma nova era”. Não é o Livro Vermelho de Mao, mas é mais uma prova do papel que ele se reserva para si próprio e significa uma ruptura em relação a Deng, ainda que não um regresso impossível a Mao. A eleição de Trump ajudou a dar credibilidade a Xi nos fóruns internacionais. Enquanto o Presidente americano “destrói à picareta a Pax Americana”, na expressão feliz do Monde, Pequim quer aproveitar a oportunidade para ocupar o espaço deixado vazio. Xi anuncia-se como o defensor da globalização, da liberdade de comércio, dos acordos de Paris sobre o clima, da paz e do desenvolvimento em cada fórum internacional a que comparece. Aproveitou a crise europeia para multiplicar o investimento chinês nos países do Sul e nos de Leste, desesperados por investimento estrangeiro, apontando as baterias para a energia e para os portos.

4. Falta olhar para o que pode vir a ser uma China mais activa na cena internacional. Já não lhe chega a economia. Precisa de um poder militar que sustente esse objectivo. Xi fala de um exército “para fazer a guerra e ganhá-la”. É o que tem estado a construir, aumentando em cerca de 10 por cento ao ano o seu orçamento da Defesa. A China já tem dois porta-aviões no mar e, à falta de melhor, está a construir “porta-aviões” imóveis em ilhas artificiais no Mar da China do Sul, desafiando o direito dos países ribeirinhos. A chamada “Belt and Road Iniciative” para ocupar o grande espaço euro-asiático, é uma manifestação nada desprezível do seu novo soft-power. Até agora, já investiu 300 mil milhões de dólares. A Coreia do Norte é, talvez, o ponto mais fraco de quem quer ter maior protagonismo mundial. Com uma consequência que a China não deseja: obriga os EUA a manter sua enorme presença militar no Pacífico.

5. Quanto à Europa, o “tiro a Trump” é quase irresistível, de tal modo o Presidente americano desafia tudo aquilo que estava adquirido nas relações transatlânticas. Os europeus perceberam finalmente que não podem contar inteiramente com a América em matéria de segurança, e sabem também que as vias para a criação de um gigantesco mercado único entre as duas margens do Atlântico Norte, capaz de equilibrar a Ásia-Pacífico, estão agora cortadas. Federica Mogherini, a chefe da diplomacia europeia, falando recentemente em Bruxelas, criticou duramente o Presidente americano (ainda que sem o citar), dizendo que “o isolacionismo na política externa não leva a parte nenhuma”. E acrescentando que, “nos dias de hoje, só há uma potência global credível, confiável e previsível para o resto do mundo (…) que é a União Europeia”. O mínimo que se pode dizer é que será um longo caminho. 

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