A peculiar relação dos impostos com o mundo – das corridas de pombos ao piripiri suave

Muitas dúvidas que as empresas colocam às Finanças sobre ínfimos pormenores das regras fiscais são matéria fértil para criativas crónicas de costumes. Vasculhando as informações vinculativas do fisco, encontra-se uma verdadeira casa das histórias.

Foto

Cada caso é um caso e estes, que percorrem o nosso dia-a-dia de forma tão silenciosa, são particularmente curiosos. As pequenas histórias que aqui se vão contar, fica o leitor avisado, podem não provocar o espanto, nem o riso, nem sequer desafiar a lógica (pelo contrário), mas não deixarão de se considerar peculiares.

Alguma vez nos interrogámos por que razão um puré de fruta que compramos no supermercado pode ser tributado com o IVA a 23% e não a 6%, ou por que razão algo tão específico como a casca de pinho lavada e vaporizada é vendida a uma taxa diferente da casca de pinho no estado em que se encontra na árvore?

Para tudo isto há uma explicação fundada na lei e na interpretação das regras fiscais. Mas a complexidade do mundo da fiscalidade é também a das próprias sociedades (ou vice-versa). E não são raras as perguntas que as empresas colocam à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) portuguesa para esclarecer o mais ínfimo pormenor de uma determinada norma.

Espreitámos algumas das respostas que o fisco apresenta nessas informações vinculativas às empresas. De tudo se encontra no Portal das Finanças, onde sobressaem dúvidas em relação ao IVA de produtos alimentares muitos específicos. O cardápio, eminentemente técnico, certamente pode ser fonte de inspiração de nutricionistas, chefs ou até críticos de gastronomia.

Foto

O pombo certo

Esta é uma história que não envolve repasto à mesa; tem a ver com a aplicação do Imposto do Selo. Quem acerta no jackpot do Euromilhões terá de pagar ao Estado 20% de imposto. Mas será que as regras que se aplicam aos prémios dos jogos sociais, ao bingo, às rifas ou ao loto são idênticas para quem sai vencedor de uma competição de pombos-correio? Foi isso que o promotor de um derby de columbofilia quis clarificar, enviando à AT um pedido de informação sobre o assunto.

Recebeu um “não” como resposta. E há algumas singularidades que o justificam. Para chegar àquela conclusão, a AT começou por analisar se o evento em causa se enquadrava no conceito de “jogo” ou nas “modalidades” previstas na tabela geral do Imposto do Selo. Desde logo concluiu que não se enquadrava. É que embora o regulamento do derby se refira ao “concurso” e ao “prémio”, o que está em causa é a “prática de uma modalidade desportiva relacionada com a criação e selecção de pombos-correio para competição”. E como assim é, os prémios são atribuídos “em função da classificação dos participantes, na sequência da confrontação desportiva dos respectivos pombos-correio inscritos”.

Como não dependem de qualquer factor-sorte, mas antes do desempenho do pombo – “dos treinos realizados, da capacidade física e de orientação” –, nada têm a ver com a modalidade dos jogos de fortuna ou azar. Glória aos vencedores: os prémios ficam isentos do Imposto do Selo.

O camarão congelado

Nas informações vinculativas do IVA há imperdíveis casos em que as empresas querem ter a certeza de qual é a taxa que se deve aplicar aos seus produtos. Um operador da indústria pesqueira, vendedor de congelados e refrigerados, pretendia clarificar a regra sobre o camarão que comercializa. E a dúvida prendia-se com a especificidade do negócio: o camarão é produzido em aquicultura e vendido ultracongelado, é comercializado cru, mas adicionado de antioxidantes ou conservantes, para preservar a cor do crustáceo. A empresa defendia que devia ser aplicada a taxa reduzida (6%) prevista para as culturas aquícolas e piscícolas. Mas neste caso a AT explicou que o produto teria de ser tributado à taxa normal (23%).

A explicação é muito técnica, mas de forma simplificada é possível dizer que o fisco justificou a decisão com o facto de os crustáceos, ao contrário do peixe e dos moluscos, não estarem na lista dos produtos com taxa reduzida, nem poderem ser tributados ao valor mais baixo previsto para determinadas actividades de produção agrícola, onde se incluem as culturas aquícolas e piscícolas. Isto porque a empresa, afinal, “não exerce a actividade de produção agrícola, na variante de aquicultura, nem comercializa produtos provenientes de um produtor aquícola que não tenham sido sujeitos a processamento industrial, como exigido para aplicação” da taxa reduzida. Ponto final do fisco.

A mariscada especial

Continuamos à mesa. Uma empresa quis saber se um preparado de mariscada de 800 gramas, sem glúten, podia ser considerado um produto dietético destinado “à nutrição entérica e produtos sem glúten para doentes celíacos”. Teria a vantagem de beneficiar do IVA a 6%. Os serviços do fisco examinaram o produto ao pormenor, descrevendo como está embalado. Há lá mexilhão, amêijoa, camarão, miolo de camarão, mexilhão meia concha, delícias do mar sem glúten, miolo amêijoa, tudo numa cuvete “etiquetada e embalada numa caixa de cartão canelado”. Só que a rotulagem do produto, detectou o fisco, só faz referência a quatro itens – o país de origem, o método de pesca, o nome científico e a chamada “zona de pesca FAO”. E as regras europeias estabelecem mais condições.

Teve a mariscada o mesmo azar do que o camarão. Aplica-se o IVA normal porque não foi possível concluir que o produto cumpre os regulamentos da União Europeia relativos à “prestação de informação ao consumidor sobre a ausência ou a presença reduzida nos géneros alimentícios de ‘glúten’”. Não fosse isso, teria a Mariscada 800 grs outro destino. Foi o que aconteceu com o Preparado para Mariscada sem Glúten 500 grs: o fisco já aprovou a taxa reduzida porque se comprovou que o produto foi sujeito a “um especial processo de preparação que dirime qualquer risco de contaminação ou presença de glúten”.

A casca de pinho

Indo agora à produção florestal, a mesma pergunta se impõe para a casca de pinheiro. Se ela for vendida tal e qual se encontra na árvore, então o IVA é de 6%; se a casca for lavada, vaporizada e calibrada já é tributada à taxa normal (23%), porque se trata de um “subproduto da madeira obtido de forma industrial”. E assim ficou esclarecida a empresa de comércio e serração de madeira, que queria pôr um ponto final num constante problema de facturação com os seus fornecedores. Não existia consenso, consensualizado ficou com a decisão do fisco.

O frango na brasa

Voltemos às refeições. Neste caso, a uma “unidade móvel de produção e venda de frango no churrasco e tiras de costela de porco ‘para fora’ (take away) e de embalagens de batatas fritas que não configuram uma refeição pronta a consumir”. Trinta e quatro palavras para definir o negócio. Eis o dilema: que taxa aplicar ao serviço e à venda das embalagens de batatas.

Aqui, a conclusão parece mais simples: a venda do frango e das tiras, como take away, é tributada com o IVA da restauração, a 13%, porque é isso que a lei prevê. Já as batatas fritas não são nesta circunstância uma refeição pronta a consumir, ficando de fora da lista de bens e serviços da taxa intermédia.

Não é caso único. Quando a meio de 2016 o IVA da restauração baixou parcialmente para os 13% (nos serviços de alimentação, cafetaria e água lisa), foram muitas as dúvidas que se levantaram sobre a abrangência da medida. O que aconteceria com as farturas e os churros vendidos nas roulotes das feiras? A lei prevê o IVA de 13% para as “refeições prontas a consumir, nos regimes de pronto a comer e levar ou com entrega ao domicílio”. Mas não é o caso das farturas se elas forem vendidas “sem meios de apoio adicionais”, porque, entendo o fisco, os produtos em causa “não integram o conceito de refeição”.

Diferente é o que se passa com os cachorros quentes que podem ser consumidos no local, nas mesas e cadeiras da esplanada da roulote. São um alimento preparado pronto a consumir e aqui já se aplica o IVA da restauração.

Os barcos de pesca

A lei prevê que os bens de abastecimento a bordo das embarcações de pesca costeira estejam isentos do IVA, com excepção das provisões de bordo (os produtos a serem consumidos pela tripulação e pelos passageiros). Embora o caso pareça claro, complica-se porque a lei também prevê que fiquem isentos os “serviços de alimentação e bebidas fornecidos pelas entidades patronais aos seus empregados”.

Ora, perante isto, uma empresa pretendia saber se teria ou não de pagar o IVA na compra das provisões (as refeições, a alimentação e as bebidas). Resposta: os valores não poderão ser deduzidos, salvo se a empresa renunciar à outra isenção do serviço de alimentação dos empregados.

Foto

As aulas de vela

Vejamos agora o caso de um professor de vela que passa recibos verdes e prevê ganhar este ano mais do que os dez mil euros anuais que lhe garantem a isenção do IVA. Ainda pode ficar livre do imposto pelo facto de dar aulas num clube desportivo, tendo em conta que a lei prevê a isenção quando o serviço prestado é o ensino?

Também neste caso a resposta é “não”. Tudo por causa das especificidades da lei. É que o código, vinca o fisco, prevê que isso aconteça quando as aulas são dadas nas escolas do Sistema Nacional de Educação ou nos estabelecimentos “reconhecidos como tendo fins análogos”. Não era o caso, paga-se o imposto.

O óleo e o azeite

À luz do código do IVA, o azeite é tributado ao IVA reduzido, o mesmo acontecendo com a banha e outras gorduras de porco, mas não com as restantes gorduras e óleos gordos. Significa isto que tanto o azeite virgem extra, como o azeite virgem, e o azeite composto por azeite refinado e azeite virgem são tributados a 6%. Mas de fora fica o azeite de repasse, “obtido a partir da centrifugação do bagaço de azeitona”, não destinado ao consumo humano. E se é isso que a empresa produz, então está a produzir um óleo e não um azeite, sendo tributado com o IVA a 23%. Decisão carimbada.

Voltemos ao puré da fruta, “pronto a comer à colher”. Não é um sumo. Também não é um néctar de fruta. É, como a própria empresa o diz, um produto que pode ser consumido como uma sobremesa ou na confecção de bolos e tartes. Olhando para as características, não se aplica a mesma regra dos néctares de fruta, e por isso é tributado a 23% e não à taxa mínima.

Foto

O sal com piripiri

Por fim, eis uma decisão que revela como a intensidade do piripiri no sal pode fazer toda a diferença para determinar um “sim” ou um “não” do fisco. Qual é o IVA aplicado à flor de sal aromatizado, “especificamente aos produtos ‘flor de sal natura com piripiri suave’, ‘flor de sal natura com piripiri médio’, ‘flor de sal natura com piripiri intenso’ e ‘flor de sal natura com alho’”? Como a lei prevê uma taxa reduzida para o sal-gema e o sal marinho, isso também vale nestes casos tão concretos?

Para decidir, o fisco teve em conta a forma como é feita a aromatização dos produtos. O procedimento, argumentou a empresa, é em tudo semelhante ao da “aromatização pelo fumo, já que os ingredientes aromatizantes são incorporados por um processo de absorção, não sendo alterada a característica principal do sal ou da flor de sal”. E na sua essência, concluiu a AT, os produtos continuam a ser flor de sal à qual se adiciona “piripiri com diferentes intensidades e alho”.

Neste caso, chegou à empresa uma boa notícia: desde que as características da flor de sal se mantenham, aplica-se a taxa de 6%, pois o produto entra na categoria de sal-gema.

Com mais ou menos piripiri, fica uma trivialidade para quebrar o gelo à mesa. O fisco decidiu, está decidido.

Sugerir correcção
Comentar