Imitação da vida em terminal de aeroporto

Com Tripoli Cancelled, inspirado por um caso verídico, o bangladeshi Naeem Mohaiemen assina um dos grandes filmes do Doclisboa.

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Tripoli Cancelled, de Naeem Mohaiemen DR
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Aqui há uns anos, Steven Spielberg inspirou-se no kafkiano caso verídico de um iraniano que viveu no limbo durante 18 anos, retido num aeroporto sem documentos que lhe permitissem entrar no país nem regressar ao seu país natal, para filmar Terminal de Aeroporto. É a primeira coisa que nos vem à cabeça quando somos confrontados com Tripoli Cancelled, um dos momentos mais fortes da Competição Internacional do Doclisboa: Naeem Mohaiemen, bangladeshi nascido em Londres e residente em Nova Iorque, conta nesta nova longa-metragem a história de um homem há 10 anos retido num aeroporto. Só que este aeroporto está abandonado e a cair aos pedaços e o homem vagueia solitário pelos seus corredores e foyers, em longos planos-sequência filmados com uma steadycam paciente, enquanto o ouvimos ler do romance de Richard Adams Watership Down, dançar ao som de Rivers of Babylon dos Boney M e repetir diariamente gestos, percursos, movimentos.

Tripoli Cancelled começa por causar estranheza para quem conhece a obra de Mohaiemen, artista multimédia e bolseiro Guggenheim interessado na dimensão humana das utopias revolucionárias do pós-1968 e na ideia de uma história paralela dos “vencidos” da história. O Doclisboa mostrou em 2015 os três primeiros filmes do seu projecto The Young Man Was, documentários ensaísticos trabalhando como um jogo de paralelos entre as convulsões políticas da história do Bangladesh e os radicalismos violentos utópicos ocidentais, inscritos numa lógica mais ou menos formal do documentário e do trabalho com materiais de arquivo. Tripoli Cancelled, contudo, tem todos os contornos formais de uma ficção, inteiramente rodada no aeroporto ateniense de Ellinikon, encerrado há 15 anos, com o actor Vassilis Koukalani.

Aos poucos, esta aparente ficção, estreada em Atenas como parte da Documenta 14, revela-se como outra coisa: um ensaio toca-e-foge que joga em simultâneo com o estatuto de Atenas como origem da civilização e da cultura ocidentais, com a crise contemporânea dos refugiados presos num limbo entre duas margens, com a ideia do aeroporto como lugar de trânsito ou de passagem. O nosso “herói” (à falta de melhor designação, porque nunca lhe ouvimos o nome) tem algo de Beckettiano na maneira como para ali está, suspenso de uma resposta que talvez nunca chegue, condenado a repetir diariamente uma “imitação de vida” que ecoa de modo poderoso nos nossos dias. E quando o filme termina, um cartão explica que o pai de Mohaiemen passou realmente nove dias retido em 1977 no aeroporto Ellinikon, quando perdeu o passaporte a caminho de Tripoli, na Líbia. “Esta não é a sua história.”

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