Dawson City ou a memória reencontrada

A partir de filmes perdidos redescobertos numa remota cidadezinha canadiana, Bill Morrison assina uma arrebatadora história do cinema. Obra-prima no Doclisboa

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Dawson City: Frozen Time, de Bill Morrison DR
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Dawson City: Frozen Time, de Bill Morrison DR

“O filme nasceu de um explosivo”, diz-se muito cedo na história que Bill Morrison conta (porque é uma história) em Dawson City: Frozen Time (no Doclisboa domingo à noite, às 21h30, no cinema São Jorge). O filme, neste caso, é a película de celulóide que permitiu registar imagens em movimento – e que nasceu como uma espécie de “efeito secundário” da combinação da altamente explosiva nitrocelulose ou algodão-pólvora com cânfora. Em parte, é por isso é que muita da produção das primeiras décadas do cinema, particularmente do cinema mudo, estão perdidas – as características altamente inflamáveis da película de nitrato, usada até se encontrar um substituto mais seguro (chamado pela indústria de película de segurança), levaram à perda de milhares de cópias e negativos.

A história do filme enquanto nascido de um explosivo combina-se com a história particular da distante localidade canadiana de Dawson City, um dos primeiros centros das “corridas ao ouro” dos tempos dos pioneiros do Novo Mundo, para tornar Dawson City: Frozen Time num dos filmes mais arrebatadores dos últimos anos, quando não mesmo da década. É que Dawson City, lugar de acesso demorado que chegou a ter 40 mil habitantes em finais dos anos 1890, era o “fim da linha” do circuito americano de distribuição de cinema. Os filmes faziam todo o percurso pelos estados americanos até terminarem naquele ermo nevado do norte, e os estúdios não queriam assumir os custos exorbitantes do retorno das cópias depois de exibidas, preferindo dar instruções para a sua destruição. Muitas cópias desapareceram em incêndios, outras tantas foram deitadas fora. Mas, por esquecimento e acidente, mais de 500 bobinas de nitrato de filmes mudos sobreviveram e foram reencontradas em finais dos anos 1970, tornando-se numa das mais significativas descobertas de filmes julgados perdidos da história do cinema.

Bill Morrison, mestre do cinema de found footage, autor do Dockworker’s Dream com música dos Lambchop encomendado pelo Curtas Vila do Conde, parte dessas imagens para construir uma saga onde a grande História da 7ª arte e a pequena história de um lugarzinho perdido são inseparáveis. A forma narrativa é mais convencional do que é habitual no cinema de Morrison, embora facilmente explicável pelo século de história que o filme tem de cobrir. Mas a sua capacidade de amplificar a descoberta de Dawson City para a tornar numa pequena viagem pelas origens do capitalismo e do sonho americano, meditação comovente sobre a memória e a passagem do tempo e apelo apaixonado à preservação do passado, torna-o no cume da já longa carreira de Morrison. É um filme de arquivo que é inteiramente de hoje, para os dias de hoje, em que a proliferação do digital volta a levantar as mesmas questões de sobrevivência que se colocaram na altura com o filme de nitrato. Dawson City: Frozen Time é uma obra-prima absoluta, à atenção devida dos distribuidores mais aventurosos.

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