Se cada nutricionista diz uma coisa diferente, em que é que devemos acreditar?

Existirão sempre (e ainda bem), diferentes perspectivas e abordagens a um mesmo problema, mas todas elas deveriam cumprir dois critérios básicos: a plausibilidade biológica e a evidência científica

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Esta é uma questão que faz sentido colocar na era do digital onde a proliferação da informação atinge proporções nunca antes vistas. A atitude de escuta passiva que outrora existia em quase todas as consultas de nutrição, tornou-se num debate em que o paciente já traz várias questões de casa e onde surgem recorrentemente tiradas como “mas um colega seu disse uma coisa diferente” ou “mas eu vi no instagram/facebook que…”. Como tal, este é um artigo onde são dadas algumas ferramentas que auxiliem no processo de pesquisa de informação sobre nutrição e alimentação da forma menos enviesada possível.

Começando pelas redes sociais, estas são um ótimo meio de partilha e divulgação de informação, mas não estão de nenhuma forma sujeitas a uma revisão de pares nem ao contraditório. Existem páginas fantásticas na mesma proporção de páginas que não têm ponta por onde se lhe pegue. O número de seguidores de uma página/pessoa não é de forma nenhuma o garante de informação de qualidade. Aliás, tendo em conta que no meio académico esta forma de partilha de informação ainda é de certo modo olhada de soslaio, podíamos quase dizer que existe (tendencialmente) uma relação inversamente proporcional entre o número de seguidores de alguém numa rede social e o seu currículo académico (já para não falar da enorme quantidade de bloggers que dão “dicas” de nutrição sem formação na área).

As notícias sobre nutrição partilhadas pelos media, também podem ser uma boa ferramenta (caso não estejam infectadas pelo vírus do clickbait e do sensacionalismo), até porque validar primeiro os factos com um nutricionista como feito neste caso, não custa nada. Mas se aos media ainda pode ser dada uma atenuante numa leitura menos correcta dessa informação, no caso dos próprios profissionais de saúde, especialmente os nutricionistas o caso já é bastante diferente.

É completamente salutar que existam opiniões diferentes sobre cada tópico e que se discutam as ciências da nutrição com elevação e com base na evidência científica disponível. Só que a este nível existem duas atitudes extremas que convém de todo excluir: uma mais retrógrada que assume que a sua autoridade e curriculum são o suficiente para deixarem de estudar a partir de determinada fase da vida e achincalhar de forma paternal quem pensa de forma diferente; e uma demasiado vanguardista que, na ânsia de estar sempre na crista da onda do ponto de vista científico, leve à partilha e recomendação de algumas abordagens terapêuticas ou suplementos logo ao primeiro artigo ou sinal de existência de efeitos positivos. Em suma, é tão mau estar parado no tempo como ser um “catavento científico”.

Seja para posts nas redes sociais, seja até para comunicações em congressos ou formações, há sempre uma grande necessidade de ter o filtro ligado, uma vez que hoje em dia são cada vez mais frequentes manipulações de informação de forma a transmitir uma ideia previamente concebida. Adulterações de gráficos dos artigos originais, escolha enviesada desses mesmos artigos (vulgarmente conhecida como cherry picking), apresentação de resultados in vitro ou em animais fazendo a ligação directa para esses efeitos em humanos, são tudo exemplos de estratégias intelectualmente desonestas utilizadas em prol de doutrinar convenientemente o público-alvo. Estas estratégias tornam-se particularmente graves uma vez que o público maioritário de muitas destas páginas e eventos são por um lado indivíduos interessados na área mas sem formação na mesma e por outro, estudantes e recém-licenciados ainda sem o arcaboiço necessário para distinguir o trigo do joio e que, com a avidez de conhecimento típica das primeiras fases de formação, aceitam muitas das vezes sem questionar todas as informações que estão a adquirir.

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A título de exemplo, se quisermos convencer alguém que o açúcar é a fonte de todos os males apresentamos a infografia acima, na qual se vê a escalada do seu consumo associada ao aumento da prevalência de obesidade fazendo com que essa análise pare no ano 2000, uma vez que a partir daí o consumo de açúcar começou a diminuir e nem por isso a obesidade deixou de aumentar (também na mesma infografia). A própria estratégia argumentativa de que “correlação não significa causalidade” muitas das vezes só é utilizada na forma que é mais conveniente e que corrobora a teoria em que o autor acredita. Neste caso em concreto, da próxima vez que ouvir alguém a culpar única e exclusivamente o alimento X ou Y pelo aumento de peso lembre-se dos valores desta infografia (ver imagem), e dos vários culpados que podem estar por detrás de um fenómeno tão complexo.

Numa ciência tão recente e com tantas variáveis em equação como as ciências da nutrição, as palavras “exactidão” e “certeza” nunca poderão ser empregues. Existirão sempre (e ainda bem), diferentes perspectivas e abordagens a um mesmo problema, mas todas elas deveriam cumprir dois critérios básicos: a plausibilidade biológica e a evidência científica. Dizer “comigo resulta” para justificar uma recomendação nutricional não é compaginável com uma prática clínica responsável e séria, até porque a ciência não se importa com o que nós acreditamos, e o pior cientista é aquele que quer provar que está certo.

A rubrica Estar Bem encontra-se publicada no P2, caderno de domingo do PÚBLICO

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