Uma homenagem ao Pinhal de el Rey

Com a Mata Nacional perdida em dois dias, uma homenagem com factos talvez desconhecidos por muitos.

A região de Leiria está de luto. Perdemos o primeiro e maior monumento de Portugal. Nunca vamos esquecer o teu tom verdejante, o teu cheiro, o som do vento a passar nas copas das tuas árvores ou o teu sabor, que nos proporcionavas com os teus medronhos e camarinhas. Esperamos voltar a ver-te em breve.

O que perdemos: diz-se que perdemos a mata nacional de Leiria, mas na verdade foi muito pior, perdemos não uma, mas três matas: o Pinhal de el Rey (Pinhal de Leiria após a implantação da República, em 1910), localizado a sul do rio Lis; a Mata Nacional do Pedrógão, entre o rio Lis e a Ervedeira; e a Mata Nacional do Urso (outrora pertencente à Universidade de Coimbra), entre a Ervedeira e Leirosa. Estas três matas nacionais estão plantadas sobre uma extensa e imponente área dunar que se estende até 13km para o interior (Zona da Ervedeira), sendo muito relevantes para a sua estabilização.

Apesar de o Pinhal de el Rey ser associado a D. Dinis (1279-1325), devido à atenção que este rei lhe prestou, pensa-se que a sementeira terá começado anteriormente. De qualquer forma, o pinhal de el Rey é a mais antiga ação de reflorestação em larga escala realizada pelo homem.

Esta região não foi sempre igual. As dunas movem-se e o rio também. O rio Lis atravessou de uma forma muito mais acentuada esta região, tendo inclusive atravessado a zona correspondente às três matas. Existem indícios de a foz do rio
Lis se ter localizado perto
da atual praia do Osso da Baleia, a cerca de 15km a norte da sua posição atual.

Prevenção de incêndios: há vários séculos que uma série de cuidados têm sido tomados relativamente à prevenção de incêndios no Pinhal de Leiria. D. Maria I (1777-1816) instituiu a caixa de fumo, feita em folha de ferro e um palmo de areia de modo a que os trabalhadores pudessem apagar os cigarros de forma segura. Criou os aceiros e arrifes com o objetivo de facilitar o acesso à mata e também a atuação como corta-fogo e proibiu o fabrico de carvão e alcatrão dentro da mata e interditou o uso de armas de fogo durante as montarias, por exemplo, aos lobos. No reinado de D. João VI (1816-1826) foi ordenado untar os rodados dos carros de bois de modo a evitar ignições causadas pela fricção. Proibiu ainda o lançamento de foguetes e balões às povoações próximas da mata.

Já no século XIX foram criados pontos de vigia, que guardavam a mata de noite e dia, comunicando entre si inicialmente através de bandeiras durante o dia, e focos de luzes durante a noite. As comunicações eram, no entanto, dificultadas devido à formação de nevoeiro tão comum nesta região, como todos os conterrâneos bem sabem. Tendo em conta esta característica da região e a dificuldade na identificação do talhão onde ocorria o incêndio, foi posteriormente criada uma ligação telefónica entre os diferentes postos de vigia, facilitando as comunicações e permitindo uma triangulação/localização mais exata do talhão com foco de incêndio.

As consequências do desmazelamento: infelizmente, o cuidado com esta zona tem sido cada vez menor. Apesar de estas três matas, entre 2001 e 2009, terem gerado lucros na ordem dos 26,2 milhões de euros, o valor investido ficou-se na casa dos 2,7 milhões de euros (dados do ICNF). Os guias florestais passaram a ser uma “espécie extinta” nestas matas nacionais, tornando-se mais tardia a identificação de focos de incêndio. Não existindo policiamento desta zona, o pisoteamento dunar também tem sido cada vez maior, agravado por jipes e motos.

O “abandono” destas matas nacionais pelo Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), entidade governamental responsável pela proteção desta área, teve agora as suas consequências, por sinal catastróficas: o desaparecimento quase total de mais de 700 anos de história em dois dias. Fala-se em percentagens de floresta perdida superiores a 80%, pelo menos do que diz respeito ao Pinhal de Leiria.

Contudo, o fim do fogo não é o fim dos problemas. Demorará tempo até a reflorestação ter início e o tempo de recuperação é na casa das dezenas de anos. Enquanto isso, a desestabilização deste ecossistema dunar poderá provocar a migração de areias para o interior, que poderá prejudicar, por exemplo, zonas atuais de cultura. Estaremos também mais suscetíveis aos ventos marítimos que também poderão prejudicar a agricultura. No que diz respeito à lagoa da Ervedeira, um dos ex libris desta região, também pode sofrer com este incêndio. As cinzas poderão aumentar a eutrofização da lagoa e a ausência de vegetação pode potenciar o movimento de areias por ação eólica, o que pode agravar os problemas já existentes de assoreamento (acumulação de sedimentos e diminuição da profundidade) desta lagoa. Mas talvez a lagoa não interesse muito, nem à população de Leiria, que não apoiou a proposta do orçamento participativo da câmara municipal que previa um investimento de 30 mil euros, nem ao ICNF, que no Plano de Gestão Florestal, um documento com 175 páginas, conseguiu, nas 36 das 37 menções à lagoa da Ervedeira, mencioná-la incorretamente como “Ervideira”.

Recorde-se, para terminar, uma última perda, de potencial e riqueza: o turismo. Estamos numa altura de franco crescimento do turismo em Portugal, e se antes os estrangeiros apenas visitavam Lisboa e Porto, procuram agora conhecer outras regiões do país e o crescimento do turismo na zona centro tem-se feito sentir. Esta zona florestal, devido às suas características tão específicas, estava a atrair cada mais praticantes de orientação, tendo-se inclusive estabelecido nesta região a federação nacional desta modalidade. Será que vai continuar a ser um local de eleição para a prática da modalidade? E o que será dos que procuravam as praias da nossa região? Gostarão eles da mesma forma desta região agora despida, devorada pelo fogo? Todos nós duvidamos.

Arderam na Europa cerca de 903,7 mil hectares de floresta em 2017 (dados EFFIS). Só Portugal é responsável por 520,5 mil hectares, ou seja, cerca de 58% de toda a área ardida! Se é verdade que podemos culpar desta vez o ICNF/Estado português por durante os últimos dez anos se ter desmazelado na proteção destas matas nacionais, a culpa do mesmo não se aplica, por exemplo, aos incêndios de Pedrógão Grande ocorridos em mata privada. Mais importante do que apontar o dedo aos culpados é encontrar as soluções.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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