Incêndios, Portugal, a educação e a política

Na escola, nas universidades, nos lugares de onde saem os políticos, que importância tem a destruição do Pinhal de Leiria?

Ter consciência histórico-cultural significa, antes de mais, compreender de que húmus é feita a cultura popular portuguesa, isto é, as populações do dito “país real”, as quais, na generalidade dos casos, têm uma baixa escolaridade, sofrem com a desertificação do interior, não possuem um saber livresco que possibilite outros horizontes e experiências.

Por muito que os netos frequentem a escola pública, politécnicos ou universidades, os agregados são, na origem, pobres; muitos têm a chaga do desemprego bem aberta e à vista dos sazonais caçadores de votos. São pessoas humildes e abnegadas, que têm na sua linhagem avós ou bisavós pastores, pescadores ou agricultores, homens e mulheres de pequenos mesteres e ofícios e que só desde os anos 1980, com a CEE, entraram (Deus saberá como!) no tropel da nossa História colectiva.

Só alguns familiares, de gerações já nascidas na segunda metade do século XX, tiveram a hipótese de trabalhar no sector secundário, a reboque do êxodo para as cidades que, especialmente nos anos 1960, viveram um surto de industrialização mais consolidado. Mas, no fundo, ainda que possam orgulhar-se de ver os netos de capa e batina, todos são, em bom rigor, filhos de um país ignaro, frágil e que por isso mesmo sofre.

País que, do Estado Novo até hoje, pode ter mudado muito à superfície (auto-estradas do cavaquismo, subsídios de Bruxelas, escolas com infra-estruturas megalómanas, legislação muito moderna, turismo em franca expansão...), mas é o mesmo na sua estrutura profunda, os rostos, as mãos e os olhos, que por estes dias aparecem nas televisões e jornais, mostram bem de que é feito o país real que Lisboa e outros centros urbanos não querem ver. Da tragédia de Entre-os-Rios à da praia do Meco; da violência escolar generalizada aos incêndios deste ano, creio que o problema central português é um problema de natureza educativa, de (in)consciência histórico-cultural e de cidadania.

Políticos com gravatas de seda, decisores e governantes muito sabedores dos seus ofícios, mas fechados nos gabinetes dos seus ministérios; comentadores políticos — muitos deles ex-governantes, muitos deles responsáveis por Orçamentos do Estado, por compadrios e indigências — que apresentam fórmulas mágicas para reerguer Portugal, a maioria, na verdade, não conhece o país real. O que significa para um agricultor ver arder toda a sua lavoura? Que sentido tem, para um pastor, ver morrer os seus rebanhos ou ver entregue às chamas os pastos que são o sustento dos seus animais? Qual a dimensão da angústia que sentem mulheres e crianças, homens, pais de família, ao verem as suas casas perdidas para sempre? A morte — essa morte que vem de quererem fugir da catástrofe — para o Portugal esquecido e envelhecido assume proporções trágicas. Para o país das reformas de miséria, da toxicodependência alarmante em regiões do interior; para o Portugal do abandono escolar indisfarçável, da violência entre adolescentes que não constam do ranking das escolas, pedir a esse Portugal mais do que o que tem dado é não compreender os dramas existenciais com que os portugueses se confrontam. É não saber de que massa os portugueses são feitos.

Não falo dessa retórica balofa de uma suposta resiliência lusa que, nos escolhos da vida, se transcende. Falo de uma outra massa, de outro sangue que não cabe nos discursos oficiais: do suor e sangue dos que trabalham em pequenas empresas que agora arderam; do suor e sangue dos que, vítimas da publicidade enganosa da Europa rica e seus agentes em Portugal, se endividaram ao longo dos anos por acreditarem que uma vida melhor era possível; falo dos que, tendo por única alegria o futebol e Fátima, não limparam as suas propriedades porque não têm informação, ou porque, idosos, não têm sequer força e não há, no interior, quem os ajude. Falo do país possível que existe fora da órbita de Lisboa e Porto e da malha de interesses que as elites tecem.

Esse Portugal com jovens sem expectativas de futuro, com ex-combatentes da Guerra Colonial, ressentidos e magoados com as gerações de políticos que os ofenderam na sua integridade; esse país onde o perfil dos pirómanos diz muito do analfabetismo, da loucura e da solidão, do ódio e da fúria que grassa um pouco por todo o lado; esse é o país das festas onde se queimam animais e se fazem fogueiras e queimadas a destempo; é o país onde o vizinho mata o seu vizinho; o país oculto onde há pedofilia, crime organizado, fanatismo religioso-partidário-futebolístico. É o país que só se vê para fotografias tiradas à distância, “abençoado por Deus” e também “bonito por natureza”... País que, tendo beleza, a perde a cada novo ciclo de incêndios, ou de chuvas e Invernos (Entre-os-Rios...); país que, por absoluta incúria de governos e entidades (a Protecção Civil que não nos protege), ficará à mercê das intempéries futuras e de um sistema de Justiça que protegerá sempre os seus governantes.

Na escola, nas universidades, nos lugares de onde saem os futuros políticos (as jotas partidárias por onde se faz o carreirismo da praxe), que real importância tem a destruição do Pinhal de Leiria? Que consciência histórico-cultural existe entre os que, nascidos depois do 25 de Abril, exercem hoje cargos de decisão a nível nacional, regional, municipal ou de freguesia?

Arderam 506 mil hectares, morreram 106 pessoas, os feridos ascendem a mais de sete dezenas... Conhecer o país real implicaria uma classe política sabedora da História e da Literatura, que agiria com bom senso e com responsabilidade, porque se lembraria — assim a escola fosse o lugar das aprendizagens a sério — que D. Dinis não é um nome vão; que ser português é ser-se, quase sempre, da “arraia-miúda” de que nos fala Fernão Lopes. Descaracterizados, americanizados, berlinizados, como poderão algum dia perceber o que aconteceu entre Junho e Outubro de 2017?

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