A válvula de segurança

Marcelo redesenhou o exercício dos poderes constitucionais do Presidente.

“Marcelo mostrou quem manda.” A frase foi-me dita por um membro do Governo na quarta-feira de manhã, já era conhecida a notícia de que Constança Urbano de Sousa exigira sair do Governo, alegando a sua “dignidade pessoal” e pondo travão à teimosia do primeiro-ministro, António Costa, em obrigá-la a arrastar-se em funções, quando tinha pedido para sair há quatro meses.

É verdade que a comunicação ao país do Presidente da República na terça-feira à noite tornou inadiável a decisão de Constança Urbano de Sousa. Mas assim como a crise no Governo não se resume apenas à permanência da ministra naquela pasta, a intervenção de Marcelo Rebelo de Sousa representa muito mais do que o apontar a porta de saída a um membro do Governo.

O Presidente não se limitou a mostrar “quem manda”. Marcelo demonstrou, com brilhantismo, o que é ser Presidente da República dentro do padrão constitucional. Mais do que isso: redesenhou o exercício dos poderes constitucionais do Presidente em Portugal. E afirmou-se como a válvula de segurança do regime e do sistema político — mostrou o que é ocupar o primeiro órgão de soberania.

Quem se lembra de Marcelo à frente do PSD sabe que ele não deixa de assumir responsabilidades. Por isso se demitiu quando, depois de impor ao partido uma coligação com o CDS de Paulo Portas, se soube que o nome deste aparecia em notícias de investigações judiciais sobre a Universidade Moderna. Mas quem se lembra da liderança de Marcelo no PSD sabe também que ele não é de ver passar os acontecimentos, conhece o seu perfil interventivo e centralizador e que não abre mão do poder de líder e de controlo da gestão política.

Num discurso brilhante — em que não faltou a emotividade de que a política deve e tem de ser feita —, Marcelo mostrou a sua real preocupação com o país e com as pessoas que de facto o constituem e que Portugal não se resume às elites que se arrastam pelos corredores do poder e que o influenciam. Marcelo mostrou o que é liderar um país. E lançou a si mesmo um desafio que não poderá ser daqui para a frente inconsequente. O Presidente prometeu ser a tutela e o real fiscalizador do regular funcionamento das instituições. E que o fará de acordo com um paradigma que nunca foi visto em Portugal.

O Presidente não se limitou a exigir uma remodelação, nos termos em que outros presidentes o tinham feito. Mais do que exigir ao primeiro-ministro, numa audiência, a saída de um ministro, o Presidente proclamou-o, sem aviso prévio, alto e bom som, numa comunicação ao país. Não se limitou a dizer basta ao primeiro-ministro e a desautorizá-lo formalmente enquanto chefe de Governo e responsável pelas opções de governação.

Não se limitou a impor uma agenda de acção concreta ao poder executivo — incluindo a orçamental —, assumiu-se como orientador das prioridades na gestão do Estado e garantiu que a liderança dessa execução será a razão maior do seu mandato. Afirmou, preto no branco, que governar não se resume a fazer acordos parlamentares, à gestão orçamental e ao controlo do défice. Governar é também isso, mas é muito mais — é cuidar da comunidade toda ela, das pessoas que a constituem e da soberania do país.

Não se limitou a marcar a agenda da Assembleia da República — ao pedir que o segundo órgão de soberania clarifique se o Governo tem condições para se manter em funções. E nisto também inovou, já que pedir isto ao Parlamento não é o mesmo que usar o poder de dissolução da Assembleia ou o de demissão do primeiro-ministro.

Marcelo mostrou um projecto para Portugal. Defendeu o regime e as instituições democráticas. Mas fez mais. Defendeu o respeito pelas pessoas, o sentimento de comunidade, o valor do património e do território e, com isso, defendeu o prestígio e a identidade nacional. Devolveu dignidade às instituições da República Portuguesa e devolveu dignidade ao país.

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