“Não temos onde nos esconder”: os mísseis da Coreia alarmam o Norte do Japão

Os testes balísticos de Pyongyang fizeram disparar as sirenes em Erimo, cidade piscatória na ilha de Hokkaido, que sente bem de perto a ameaça colocada pelo país vizinho.

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Os mísseis norte-coreanos sobrevoaram passaram sobre o Cabo Erimo, um pequeno ponto saliente que se projecta sobre o Pacífico Reuters

Desde que a Coreia do Norte lançou dois mísseis que sobrevoaram esta ventosa cidade piscatória da ilha japonesa de Hokkaido, a sargaceira Mitsuyo Kawamura vive em sobressalto. “Agora, sempre que ouço um barulho, olho para o exterior, olho para o oceano”, diz Kawamura, de 68 anos, na sua casa junto ao mar em Erimo, onde estende sobre pedras longos e escuros cordões de algas kombu, para secarem ao sol. “Sinto-me ansiosa, sem saber quando pode acontecer outra vez.”

À medida que o Japão se prepara para as eleições de domingo, o primeiro-ministro Shinzo Abe diz que a escalada das ameaças da Coreia do Norte – que no mês passado realizou também o seu sexto teste nuclear – representam uma “crise nacional” que só ele conseguirá levar o Japão a ultrapassar.

No entanto, os mísseis que sobrevoaram Erimo a 29 de Agosto e a 15 de Setembro criaram uma ameaça fantasma: ninguém os viu ou ouviu. Passaram a várias centenas de quilómetros de altura, demasiado alto para serem visíveis a olho nu, antes de caírem no Pacífico a mais de mil quilómetros para leste.

Os mísseis norte-coreanos fizeram disparar as sirenes e os “J-alarmes”, aplicação governamental para telemóvel que avisa os cidadãos em caso de perigo, o que fez muitas pessoas acordarem em sobressalto. Desde então, Kawamura armazenou comida extra e mantém sempre o rádio ligado, à espera do próximo alerta. Tal como muitos outros habitantes da cidade – e do resto do Japão – sente-se impotente e não sabe como se proteger. “Depois de ser lançado, um míssil pode cair aqui em minutos”, diz. “Não temos onde nos esconder”.

A retórica de Abe endureceu depois de a Coreia do norte ter ameaçado “afundar” o Japão e ter mantido a intenção de desenvolver ogivas nucleares capazes de atingir solo americano. O primeiro-ministro tem corroborado as palavras do Presidente dos EUA, Donald Trump, mantendo a opinião de que “todas as hipóteses estão em cima da mesa” e de que não é altura para o diálogo.

“Prometeram em 1994, e depois em 2005, que iriam abandonar o seu programa nuclear. Mas faltaram à palavra e continuaram a desenvolver mísseis e outros dispositivos nucleares. Não voltaremos a ser enganados”, afirmou Abe num comício na semana passada.

Para se proteger, o Japão instalou 34 baterias antimíssil Patriot PAC-3 por todo o território, incluindo Hokkaido, e sistemas de defesa Aegis em vários contratorpedeiros. As forças americanas estacionadas no Japão têm também equipamento de defesa contra mísseis balísticos capaz de – se tudo correr bem – interceptar e destruir um míssil em pleno voo.

“Disparar um de volta”

Os mísseis norte-coreanos colocaram a minúscula Erimo, de 4850 habitantes, sob os holofotes globais. Os mapas das emissões televisivas mostraram as trajectórias de voo dos mísseis, que passaram sobre o Cabo Erimo, um pequeno ponto saliente que se projecta sobre o Pacífico e onde as focas brincam alegremente.

Nas docas da cidade, onde pela manhã os pescadores remexem o salmão arrastado na noite anterior, atirando-o para tanques de água gelada, o apoio declarado a Abe mistura-se com a preocupação de que ele seja demasiado estridente e esteja a pôr o Japão em risco.

“Neste momento não há ninguém melhor do que Abe”, diz Satoru Narita, pescador de 72 anos. Ryosuke Kinoshita, de 23 anos e apoiante do de Abe, alinha pelo mesmo diapasão: “O Japão até tem sido demasiado passivo. Da próxima vez que eles lançarem um míssil, quase que gostaria que disparássemos um de volta”, diz. “Não conseguimos viver em paz e em segurança.”

Mas Haruki Suminoya, presidente do sindicato dos pescadores de Erimo, avisa que uma excessiva agressividade pode levar a Coreia do Norte a retaliar: “A abordagem de Abe é demasiado dura, demasiado inflexível. Seria preferível uma abordagem mais cautelosa.”

A recente guerra de palavras entre Trump e a Coreia do Norte não ajudou a acalmar os habitantes de Erimo, que lembram que são um alvo muito mais próximo do que os EUA.

Embora seja preciso pressionar a Coreia do Norte, demasiada intransigência pode ser desastrosa, diz o presidente da câmara, Masaki Onishi. “Se a Coreia do Norte tomar alguma acção séria, o Japão está na linha de fogo.”

Rever a constituição

Os habitantes de Erimo mostram-se divididos quanto à famosa intenção de Abe de rever a Constituição pacifista do Japão para clarificar o estatuto das forças militares do país. Os críticos dizem que tal poderá levar a um aumento da presença das forças armadas japonesas no estrangeiro, envolvendo-a nos conflitos liderados pelos EUA.

O sacerdote xintoísta Hirotaka Tezuka, de 39 anos, diz que a Constituição está desactualizada: “Precisamos de uma Constituição mais adequada aos tempos que vivemos”. Por outro lado, Yoshihiro Naito, de 77 anos, afirma que “é o compromisso com a paz que tem mantido o Japão seguro”. Tenciona votar num partido da oposição por achar que Abe e o seu partido se tornaram demasiado poderosos.

Os governantes municipais dizem não ter tomado quaisquer medidas preventivas relacionadas com os acontecimentos recentes, nem planeiam exercícios de protecção civil, como tem acontecido noutros locais.

A cidade está equipada com altifalantes que servem para avisar a população em caso de tsunamis, tufões – e agora também mísseis. Nos últimos meses foram também instalados dispositivos wireless em 1500 das 2200 casas, para que os residentes possam ouvir os alertas mesmo quando estão no seu lar.

O presidente da câmara revelou também que Erimo tem reservas de emergência de comida, água e outros produtos. Tal é especialmente importante em Erimo porque a única ligação da cidade ao resto de Hokkaido é uma estrada costeira que costuma ser fechada várias vezes por ano devido à chuva forte ou a ondas de grande dimensão.

Os pescadores locais estão apreensivos por causa do aviso da Coreia do Norte de que pode testar uma bomba de hidrogénio no Pacífico, pois temem que isso possa contaminar a água, tal como aconteceu no desastre nuclear de Fukushima em 2011. “A radiação contaminaria todo o peixe”, diz Narita, o pescador mais velho. “Tal como em Fukushima, os nossos trabalhos estariam perdidos.”

A indústria pesqueira da cidade já tem sido afectada pela diminuição da pesca do salmão e pela escassez de jovens que queiram continuar a tradição. Os habitantes dizem que quando os jovens se mudam para cidades como Sapporo, a capital de Hokkaido, muitas vezes os pais seguem-nos. A população de Erimo, que chegou a atingir 9 mil pessoas nos anos 60, encontra-se hoje reduzida a metade desse número. “Somos uma cidade de pescadores”, diz Naito. “Se deixarmos de poder pescar, é o fim.” Tradução de António Domingos

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