Puigdemont recusa plano de Rajoy, o “pior ataque” à Catalunha desde Franco

Centenas de milhares pediram em Barcelona a libertação dos dois Jordis, presidentes das grandes associações soberanistas. Depois de ouvirem o primeiro-ministro anunciar que Madrid vai afastar todo o governo catalão, também gritaram "Independência".

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Uma enorme bandeira independentista na manifestação que pedia "liberdade" para os dois Jordis Ivan Alvarado/Reuters

O dia em que Mariano Rajoy anunciou as medidas com as quais o seu executivo pretende aplicar o artigo 155 da Constituição, substituindo-se, na prática, ao governo e parlamento catalães, foi aquele em que muitos na Catalunha lembraram Franco e os tempos da ditadura. Foi também o dia em que o PSOE perdeu um membro da sua Comissão Executiva, a catalã Núria Parlón, para quem a aplicação do 155 “amplia a fractura emocional e territorial entre Catalunha e Espanha”.

Para forçar “o regresso à legalidade” das instituições catalãs – que desde as sessões do parlamento de 6 e 7 de Setembro entraram abertamente em choque com a Constituição e o próprio Estatuto da Catalunha, ao aprovar leis que se dizem acima destas – o PP de Rajoy, em acordo com o PSOE e o partido Cidadãos (C’s), desenhou uma proposta que dissolve sem o assumir a assembleia catalã e afasta todos os membros da Generalitat.

Com um artigo constitucional omisso no seu âmbito e nunca aplicado, havia margem para surpresas. Mas poucos terão esperado um conjunto de medidas tão duro e polémico – para muitos constitucionalistas, o 155 não permite dissolver órgãos autonómicos como a Generalitat nem sequer suspender o exercício das competências destes órgãos.

Ora, de acordo com o texto enviado por Rajoy ao Senado, que o deverá votar na sexta-feira o governo autónomo deixa de existir enquanto tal e o parlamento fica esvaziado: perde funções de propor e votar a investidura de um candidato à presidência, funções de controlo sobre as novas autoridades e passa a ter de esperar 30 dias até Madrid aprovar ou não qualquer iniciativa parlamentar.

Polícia catalã e media públicos ficarão directamente sob a alçada do Governo central ou de autoridades por este nomeadas – conselhos de redacção e comissões de trabalhadores de todos (TV-3, Catalunha Rádio e Agência Catalã de Notícias) já fizeram saber que não estão dispostos a acatar ordens de directores impostos pelo Estado.

Para o presidente da Generalitat, Carles Puigdemont, trata-se do “pior ataque ao autogoverno da Catalunha desde o ditador Francisco Franco”, com o “Governo espanhol a proclamar-se de forma ilegítima” representante dos catalães. Antes, a presidente do parlamento, Carme Forcadell, afirmara que “nem o artigo 155 lhes permite fazer o que querem e eles sabem; não os acompanha nem a legalidade nem a legitimidade nem a maioria da sociedade catalã”.

Forcadell descreveu ainda “o ataque mais grave às instituições catalãs desde o seu restabelecimento [com a democracia]” e promete “defender a soberania da Catalunha” e “trabalhar sem descanso para que o parlamento possa representar aquilo em que votaram os catalães”.

“Isto cheira a franquismo, voltámos a 1975”, considerou o porta-voz do PDeCAT (Partido Democrático Europeu Catalão, de Puigdemont) no Senado, Josep Lluís Cleries, defendendo que PP, PSOE e C’s “usurparam o poder do governo da Catalunha falsamente apoiados no artigo 155”.

“Nem um passo atrás”

O dia começou com o anúncio de Rajoy, continuou para uma tarde de protestos em Barcelona – a convocatória visava pedir a liberdade dos presidentes das duas principais associações independentistas, acusados de “sedição” e em prisão preventiva desde segunda-feira, mas obviamente houve gritos de “Independência” e de “Nem um passo atrás”, na sequência da proposta de Madrid. Segundo a Guardia Urbana, participaram 450 mil pessoas.

A reacção mais aguardada e tardia, a de Puigdemont, que só falou às 21h (menos uma hora em Portugal continental) depois de ter participado na manifestação pela libertação de Jordi Sánchez e Jordi Cuixart, foi mais breve e talvez menos concreta do que alguns esperariam.

O líder catalão não se apressou a anunciar que vai declarar a independência que suspendeu a 10 de Outubro. Mas disse, com clareza, que o pretendido por PP, PSOE e C’s “está fora do Estado de direito”, lembrando que Rajoy respondeu a “todas as propostas de diálogo” com “silêncio ou repressão”. Puigdemont recordou também que a Generalitat é anterior à actual Constituição, de 1978, e está habituada “a sofrer golpes do Estado espanhol”.

“Não podemos aceitar este ataque”, afirmou, antes de anunciar que vai “pedir ao parlamento uma sessão plenária para debater a tentativa de liquidar a democracia” catalã. Só depois haverá decisões.

Brechas nos socialistas

Talvez Puigdemont suspeite que, desta vez, os independentistas possam contar com outros apoios no debate. Quando os deputados que apoiam o seu governo votaram as leis do Referendo e da Transitoriedade (entretanto declaradas inconstitucionais pela Justiça), os deputados do PP, do Partido Socialista Catalão (PSC) e do C’s abandonaram o hemiciclo. Ficaram os eleitos pela coligação cívica En Cómu Podem (apoiada pelo Podemos), que se abstiveram nas duas votações.

Tendo em conta as reacções à proposta enviada por Rajoy ao Senado, antecipa-se um cenário um pouco diferente. “Hoje é um dia terrível para a democracia de Espanha”, afirmou o secretário da organização do Podemos, Pablo Echenique, dizendo que o seu partido ficou “em choque” depois de conhecer as medidas. O partido de Pablo Iglesias opõe-se à independência mas defende que os catalães têm o direito a votar sobre o seu futuro político e tem apelado repetidamente a Rajoy para que dialogue com Puigdemont.

Núria Parlón, autarca do PSC em Santa Coloma de Gramenet, que enviou a Pedro Sánchez a sua demissão da Comissão Executiva do PSOE, onde era secretária da Coesão e da Integração, também assinou um comunicado com outros três autarcas catalães onde pedem ao PSC “que se oponha frontalmente a esta medida”, recordando que “o projecto dos socialistas catalães se fundamenta no exercício e constante reforço do autogoverno da Catalunha”.

Estes dirigentes asseguram que, ao contrário do que garantem PSOE e PP, “o 155 implica a suspensão da autonomia da Generalitat e do parlamento, o que terá consequências irreparáveis”. A Puigdemont pedem que não adopte nenhuma “medida irreversível e unilateral” e que, pelo contrário, insista na busca de uma solução política. “É imprescindível parar o relógio, congelar todas as condições prévias, sentar-se a falar, sem exclusões nem linhas vermelhas”.

Mobilizar e resistir

Independentemente do que saia do próximo plenário no parlamento catalão – se dependesse dos partidos que apoiam Puigdemont, seria uma declaração solene de independência fundamentada nos resultados do referendo inconstitucional de dia 1 – certo é que ninguém vai ficar de braços cruzados face ao que se antecipa.

Nem os líderes políticos nem as organizações dos dois Jordis presos, a ANC e a Òmnium, podem impedir Madrid de fazer seja o que for. Mas podem, e vão tentar, organizar a resistência às novas autoridades e às suas ordens. Isto enquanto gerem uma mobilização na rua que pretende ser permanente.

O líder do PDeCAT no Senado fez uma pergunta que muitos colocam: o que pensa Rajoy fazer se, depois de convocar eleições autonómicas (num período máximo de seis meses), voltarem a ganhar as independentistas, que hoje têm 72 deputados no parlamento de 135 lugares. “Vai deixar-nos governar ou aplicará de novo o 155?”.

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