A Casa Independente viu um bairro sair do lixo para o luxo

A afirmação da Casa Independente como paragem de lisboetas, de quem só está de passagem, aconteceu enquanto o Intendente deixou de ser uma zona proibida da cidade. Em cinco anos, o bairro foi “do lixo ao luxo”, mas há problemas que persistem para lá das renovadas fachadas.

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A Casa Independente abriu em 2012. Este sábado há festa de aniversário e a entrada é livre Rui Gaudencio
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A Casa Independente abriu em 2012. Este sábado há festa de aniversário e a entrada é livre Rui Gaudencio
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A Casa Independente abriu em 2012. Este sábado há festa de aniversário e a entrada é livre Miguel Manso

Mal se passam as grandes portas verdes do 45 do Largo do Intendente, há uma voz quente que ecoa e nos acompanha enquanto subimos as escadas para o primeiro andar. Aí, o segredo é revelado. É Sara Tavares a preparar-se para a apresentação do seu novo álbum Fitxadu, que havia de acontecer dali a pouco. Horas antes, a artista tinha ligado às proprietárias da Casa Independente a pedir-lhes para ocupar o espaço porque a festa, que ia ser feita no pátio da própria casa, estava ameaçada pela chuva. A resposta? Claro que sim. “Esta é uma casa de amigos”, diz Inês Valdez, que com Patrícia Craveiro Lopes criou uma casa que serve de sala de concertos, bar, associação recreativa ou restaurante.

Em 2011, “duas miúdas” chegavam ao Intendente, zona non grata da cidade com problemas de toxicodependência, a violência ou a prostituição, para integrarem a Largo Residências, um projecto de residências artísticas e escola de artes performativas. Conheceram-se e foi ali mesmo, no intocado bairro do Intendente, que começaram a trabalhar com algumas bandas. Puseram os Dead Combo a lançar Lisboa Mulata no histórico Sport Clube do Intendente. Num outro projecto, com a mesma banda, acabariam por entrar na antiga casa da comarca de Figueiró dos Vinhos, no 45 do Largo do Intendente.

“Foi o espaço que nos encontrou a nós”, diz Inês, sentada na esplanada interior, recordando os inícios da Casa que se quis e quer Independente. Nestes cinco anos, conquistou o lugar nos roteiros que levam turistas àquela zona da cidade. E não mudou assim tanto: o tigre gigante, que era para ser um improviso mas que acabou de se tornar a imagem da casa, continua pregado na parede da sala que costuma ser sala de concertos e pista de dança, que se prolonga para as varandas com vista para o largo. 

Continuam as salas despretensiosas, com as quinquilharias e bugigangas curiosas como as que existem na casa das avós, que contam as histórias delas ou de outras pessoas. Permanece o espírito selvagem e tropical da casa, que ganhou nova cara em poucos meses, com orçamento apertado e com a boa vontade de amigos.

Recuperaram móveis, mudaram a cozinha de sítio, modificaram as casas de banho que se quiseram “andróginas” e que funcionam como galerias de arte.

Para lá das fachadas bonitas

Enquanto decorriam as obras de reabilitação no interior da casa, o Largo do intendente era também requalificado. “Passou do lixo ao luxo. Não tinha nada a ver. Era alcatrão, terra batida, parecia um sítio de guerra. As pessoas tinham medo de ir para o Intendente”, conta Inês”. Ao ponto das proprietárias acreditarem que a Casa Independente ia ser “um flop”. Mas quando finalmente abriram às portas, em Outubro de 2012, apareceram-lhes 800 pessoas à frente. 

No fim da noite, ao fechá-las, o vizinho da frente, da cervejaria Ramiro, tinha-lhes deixado uma lagosta embrulhada em jeito de boas-vindas. “Fomos muito bem recebidas, não temos nada a apontar. Estamos cá com os verdadeiros, com os puros”, diz Inês. 

Depois, uma série de ocupações começaram a mudar a vivência do espaço, com a instalação de esplanadas, do Largo Residência, ou do café O das Joanas. Também em 2011, o actual primeiro-ministro, António Costa, quando era presidente da Câmara Municipal de Lisboa, mudou o gabinete para o largo. Aí arrancaram as transformações. “É uma vontade política. É um efectivar de ‘ok, temos interesse que isso se modifique’”. 

O cenário de guerra deu lugar a um largo com chão novo, calçada portuguesa clara, uma peça central da artista plástica Joana Vasconcelos, e fachadas renovadas. Mas Costa acabou por sair e os problemas, esses, continuaram para lá das fachadas de cara lavada. “Os problemas que aconteciam antes ainda acontecem porque não são solucionáveis de um dia para o outro. Eu não sei se voltou [a decair] efectivamente, mas nós enquanto bairro tínhamos algum receio. Com todo o policiamento que existia aqui, receamos que o gabinete saísse e deixasse de haver essa necessidade. Mas houve muito cuidado com isso”, reconhece Inês.  

Apesar dos problemas, acredita que a reforma daquela zona beneficiou “seguramente” os residentes. “Vejo os residentes a ocuparem o espaço de uma forma feliz”, sublinha. Mas há histórias e vivências do bairro que agora podem estar em risco: os vizinhos Sport Clube do Intendente, “o ex-libris do Intendente”, e a Casa dos Amigos do Minho na rua de Benformoso têm fim anunciado, diz a fundadora da casa. 

“Era lixo, agora é luxo, mas vai continuar a mudar”

Porque no Intendente, como, de resto, está a acontecer por toda a cidade, o interesse imobiliário tem crescido. Como a residência universitária, anunciada por Costa quando ainda estava à frente da autarquia da capital, que, entretanto, caiu nas mãos de privados. As obras, nota Inês, estão “a todo o gás” para dar lugar a um empreendimento de luxo no que resta de um edifício do século XVIII. 

A cultura e as artes têm aparecido como armas de regeneração de zonas urbanas esquecidas. Foi assim com o LX Factory, em Alcântara, na zona do Intendente e da Avenida Almirante Reis. Mais recentemente há esse movimento em Marvila. Inês não esquece, por isso, o projecto para o antigo Hospital do Desterro, desactivado em 2006, que deveria ser transformado num pólo cultural e artístico, com espaço para a hotelaria, restauração, saúde e comércio. “Antes de virmos para aqui já estava para abrir no ano seguinte. Aquele espaço é maravilhoso. Era uma pérola se acontecesse naquela zona. Ninguém sabe se vai acontecer ou não”, critica. 

Cinco anos depois, a Casa Independente é aquilo que Inês e Patrícia projectaram no início. Mas há a vontade de acrescentar valências ao espaço. “Gostávamos muito de ter um serviço educativo, receber mais apresentações de livros, conferências, de ampliar o projecto das Narrativas Fotográficas do Intendente”. Que aliás transforma a Casa Independente numa galeria de arte, com a curadoria da fotógrafa Paulina Valente Pimentel a quem compete desafiar quem participa em workshops de fotografia a descobrir novos olhares, novas histórias do bairro. Quase como um arquivo de um bairro em mutação. “Era lixo, agora é luxo, mas vai continuar a mudar”, admite. 

Por agora, a Xaninha, que lidera a cozinha, vai continuar a fazer petiscos para partilhar e a Casa Independente vai continuar a ser um espaço multifunções dentro de um antigo edifício apalaçado: para tomar um café e trabalhar, para petiscar e ver um concerto. Este sábado é a DJ Rita Maia quem toma conta do espaço. No dia 28, fica por conta da Casa Ardente (Produções Incêndio). A curadoria do espaço fica, como sempre, a cargo de Inês e de Patrícia. 

Daqui para frente, diz Inês, é continuar esta “viagem bonita”. Que é selvagem e tropical. 

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