O vinho do Porto não é para jovens

A geração de enólogos mais qualificada do Douro está a passar ao lado do vinho do Porto. O sector está a desperdiçar o capital de inovação e de modernidade que os vinhos tranquilos trouxeram ao Douro e a perder uma oportunidade histórica de captar novos actores.

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Maria João Gala

O vinho do Porto é o grande vinho do país e um dos grandes do mundo, mas continua preso ao passado e a ser muito pouco consumido entre nós. Acontece mais ou menos o mesmo com o Madeira. No entanto, nos últimos anos, este vinho fortificado tem vindo a ser redescoberto pelos portugueses, graças, acima de tudo, a uma pessoa: Ricardo Diogo, da casa Barbeito.

Em poucos anos, Ricardo Diogo dessacralizou o vinho Madeira. Deu-lhe uma imagem mais moderna e tirou-o dos salões e das cozinhas (onde era usado como vinho para molhos), popularizando-o, sobretudo, entre os enófilos e as novas gerações de enólogos. Hoje, não há enólogo português que não fale bem do vinho Madeira, que não exalte a sua fantástica acidez, responsável pela sua inigualável longevidade, e não o queira nos seus convívios vínicos. E, sabendo-se que os enólogos e os enófilos em geral cultivam a partilha de vinhos, percebe-se o efeito multiplicador que este “ambiente” favorável tem na promoção do Madeira, por cá e no estrangeiro.

Pelo contrário, no vinho do Porto, a patine e a tradição, muito british e burguesa, continuam a amarrar este vinho a momentos solenes. E este conservadorismo estende-se não só à maioria das casas exportadoras como a quem trata da sua certificação e promoção, o Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto (IVDP), convertido hoje numa espécie de mestre de cerimónias, cada vez mais desfasado da realidade e da região que produz os vinhos. Por inércia, o sector — mais concentrado do que nunca — deixou-se enredar nas mesmas teias de aranha que cobrem as velhas garrafas de vinho do Porto. Vai vivendo da fama que o vinho ganhou e das estratégias individuais das principais companhias. Está mais elitista e fechado do que nunca, ao contrário do que acontece nos vinhos DOC Douro.

Um dos segredos do sucesso dos vinhos branco e tintos tranquilos do Douro está na sua democratização. O negócio, que durante muito tempo esteve concentrado nas cooperativas, é hoje assegurada por centenas de produtores de diferente dimensão. Qualquer pessoa pode produzir o seu próprio vinho. Não precisa de ser proprietário de uma grande quinta ou de estar ligado a um grande grupo.

No vinho do Porto, é exactamente o contrário. O sector não muda, mesmo com as vendas a caírem sistematicamente nos últimos 15 anos. Esta quebra tem sido parcialmente compensada por um aumento do valor nas vendas dos vinhos das qualidades superiores, muito graças a um enorme esforço de promoção e de investimento no enoturismo por parte das maiores empresas. Mas esse aumento de valor não chega aos produtores, que têm vindo a perder em toda a linha: a quota de uvas por hectare que podem usar na produção de vinho do Porto, o chamado benefício, é menor e o preço que recebem pelas uvas também é inferior ao que se praticava no ano 2000, apesar de os custos de produção terem subido bastante desde então. Quem vive da venda de uvas para DOC Douro ainda está pior. Devido ao excesso de oferta, os preços que se pagam não cobrem sequer os custos de produção.

Mas pensar que os problemas do Douro se resumem aos baixos preços das uvas e dos vinhos tranquilos e que o futuro da região passa por incrementar a sua venda é um erro monumental. O vinho do Porto sempre foi a principal fonte de rendimentos dos viticultores durienses e, até pela sua história e pela natureza da região, continuará a ser por muito tempo o grande vinho do Douro. É por isso que choca o conservadorismo reinante no sector.

Nas últimas décadas, a grande mudança registada foi a possibilidade de se poder engarrafar e vender vinho do Porto a partir da própria região. Esta conquista, que remonta ao final da década de 70 do século passado e teve em Luís Roseira, da Quinta do Infantado, um dos seus obreiros, é tão básica que custa a acreditar que seja tão recente. Desde então, e tirando o fim da Casa do Douro, que deixou a produção sem voz, nada mais aconteceu de relevante. O sector continua fechado à mudança, vivendo dos fantásticos vinhos velhos que foi acumulando e do fenómeno Porto Vintage. Mesmo que o boom do turismo esteja a insuflar algum oxigénio, há cada vez mais nuvens sombrias a pairar sobre o futuro do vinho do Porto. Porém, tirando algumas estratégias isoladas por parte das principais companhias, o sector, como um todo, continua a fossilizar-se.

Para além de ser preciso quase tirar um curso para entender as regras e as inúmeras categorias de vinho do Porto existentes, só os ricos ou os loucos se podem dar ao luxo de entrar no negócio. Hoje, para se poder criar uma empresa de compra e venda de vinho do Porto é necessário ter um stock mínimo de 150 mil litros. A alternativa é produzir vinho do Porto apenas com uvas próprias. Neste caso, não é obrigatório ter um stock mínimo, mas fica-se sujeito à chamada Lei do Terço — para se poder vender uma garrafa, é necessário ficar com duas em stock. É uma forma de salvaguardar futuras crises de produção, mas, para um pequeno produtor, o custo financeiro desta regra é pesado

Os pequenos produtores têm ainda outro handicap: não podem fazer lotes. Ora, a essência do vinho do Porto é o lote, é a mistura de uvas e de vinhos de diferentes propriedades. Um jovem que queira começar a produzir vinho do Porto e pretenda fazer lotes está obrigado a ter vinhas em vários sítios da região, porque não pode comprar uvas ou vinho fora da sua propriedade. Ou seja, face aos players já instalados, parte logo em desvantagem. Acresce que para poder produzir vinho do Porto é necessário ter um entreposto fiscal — e esta é outra saga com que se deparam os pequenos produtores. As exigências legais, a começar pela necessidade de entregar garantias bancárias, são tantas e as multas tão altas e discricionárias que só os mais temerários se arriscam a criar um entreposto fiscal.

É por tudo isto que a geração de enólogos mais qualificada do Douro está a passar ao lado do vinho do Porto. O sector está a desperdiçar o capital de inovação e de modernidade que os vinhos tranquilos trouxeram ao Douro e a perder uma oportunidade histórica de captar novos actores, estimulando assim a sua renovação. É uma pena e uma falha clamorosa. Definitivamente, o vinho do Porto não é mesmo para jovens. Um dia, “os velhos” que o controlam vão dar conta, mas pode ser tarde de mais.

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