O fogo e os comentadores do terceiro e quarto mundos

É lamentável que o Presidente da República vá a Oliveira do Hospital para alinhar com a ideia de que está em causa o futuro do Governo.

Acabaram de se realizar eleições autárquicas que são normalmente favoráveis aos partidos da oposição, mas não foi o caso. Não foram eleições legislativas, mas não há ninguém que não saiba que a leitura seria outra, se o resultado fosse favorável à oposição.

A direita perdeu claramente, independentemente do resultado de Assunção Cristas, que vive e progride à custa do PSD e não dos outros partidos. Cristas quer continuar a cavalgar no terreno do centro que o PSD deixou ao abandono ao galgar para a direita.

Duas semanas depois das eleições com expressão clara de apoio à política de devolução de rendimentos aos portugueses, ocorreram incêndios nunca vistos, que no domingo, dia 15, atingiram a enormidade brutal de mais de 450. Tal tragédia provocou quatro dezenas de mortos e destruições devastadoras de bens. O país viveu um domingo de verdadeiro apocalipse; a convergência de problemas que existem na floresta há décadas com condições climáticas únicas. Certamente que houve, tal como se retira do relatório da Comissão Independente, erros de avaliação do que sucedia e omissões que poderiam evitar tantas mortes nos incêndios de Pedrógão e nestes últimos.

O Governo fez seu o relatório e propõe-se levá-lo a prática no que concerne às suas conclusões. Nestas circunstâncias, o que está em causa é não só a (in)capacidade para responder a estes desafios, como também o que veio acontecendo ao longo das últimas décadas de abandono do interior, transplantando o país para o litoral. Não há ninguém que de boa-fé o possa ignorar. Estes incêndios, independentemente de responsabilidades circunscritas ao seu alastramento, não resultam do nada. Explodem com toda a brutalidade porque resultam claramente de uma ausência de um projeto de desenvolvimento para o interior do país. O interior não dá votos. Ou dá poucos, porque a agricultura, tal como existia há 50 anos, não tem futuro. Os incêndios acontecem porque o país cresce desmesuradamente no litoral e vai morrendo no interior. E até hoje o que todos os governos fizeram foi agravar a situação. Sócrates quis-nos fazer crer que o que o interior precisava era de auto-estradas... Passos e Cristas de acabar com os serviços florestais... É dessa medida que Passos tem vergonha?

Para fazer frente a mais de 500 ignições em dois dias era preciso que os meios da administração interna vivessem exclusivamente para a tarefa de apagar incêndios, o que é uma demagogia inqualificável. E nem assim tais meios seriam eventualmente suficientes. Quando das televisões nos chegam as vozes dos nossos concidadãos aterrorizados a pedir ajuda, há alguém que acredite que a ajuda não chega porque quem pode e deve ajudar se nega a fazê-lo?

A gritaria que a direita mais sofisticada ou mais bruta utiliza nos incêndios para atacar a política do Governo no seu todo e pedir a sua queda é própria de uma mentalidade de terceiro ou quarto mundos. É servir-se de uma desgraça da qual também é responsável para atingir um fim que em condições normais não conseguiria, como resulta claramente da vontade soberana do povo português.

Pretender que os incêndios são o resultado de opções estratégicas de dignificação da carreira dos funcionários públicos só pode ter a ver com gente que acerca da política tem a conceção de que vale tudo, e revelando ainda o desprezo pela função pública. Querem a proteção das florestas privatizada? Querem nacionalizar o minifúndio e entrega-lo aos tubarões? Querem que os donos das celuloses fiquem com o interior sem pessoas e apenas com eucaliptos para terem a almejada rentabilidade e fornecer a Europa limpa?

É, por isso, lamentável que o Presidente da República vá a Oliveira do Hospital para alinhar com a ideia de que está em causa o futuro do Governo. Independentemente de más decisões no terreno no combate aos incêndios, e consequentes conclusões, é de uma demagogia sem limites servir-se dos incêndios para pôr em causa a política global do Governo que tem dado resultados positivos e que tem o apoio do PS, PCP, BE e PEV.

A oposição ao Governo não vive em função do seu projeto para se afirmar como alternativa à governação. Sem ideias para sair da política de redondel de enriquecer os ricos e empobrecer os pobres, fica à espera do que a natureza lhe possa trazer para dar provas que existe. Tenta aproveitar o mar de chamas que se abateu sobre o país para sair à rua a gritar o que ela própria ajudou a criar ao longo de dezenas de anos de política de desertificação do interior e de entrega da floresta à ganância e apetite de alguns.

É pena que Marcelo Rebelo de Sousa venha declarar, numa hora de dor e sofrimento (como se as populações tivessem sido abandonadas agora e intencionalmente), como se nunca tivesse sido responsável por um partido que tem estado no governo sozinho, ou com o PS ou com o CDS, que o Parlamento tem de decidir se continua a dar apoio ao Governo. Acredita o PR que o PS, ou o BE, ou o PCP, ou o PEV, vão derrubar o Governo? Devia esclarecer. Cristas foi a anterior ministra da Agricultura que para empobrecer o país acabou com os serviços florestais. 

Todos sabem, até no CDS, que com submarinos e com menos quotas de pescado não se combatem os incêndios.

Se houvesse mais vergonha e se olhasse para a Austrália e para a Califórnia, talvez os “comentaristas” mais dados à defesa dos seus ideais pudessem refrear os seus ânimos e não puxassem as brasas às suas sardinhas. Brincar com o fogo queima. 

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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