Estes fogos que nos descarnam...

O poder é cegamente urbano e vive disso. Precisamos de tragédias para recuperarmos o senso?

Primeiro, quando soubemos que alguém morreu, isso doeu-nos. Era um de nós e ficámos tocados. Mas não conhecíamos a pessoa e se calhar nunca tínhamos passado na terra onde caiu. Achámos que foi um acidente. O mesmo aconteceu com a segunda vítima. Em seguida, quando as mortes se multiplicaram, chamámos a isso uma tragédia. E foi. Começámos a sofrer mais do que se sofre com os acidentes. Sabíamos o nome das terras e ficámos preocupados com tal dimensão. Mas ainda era só um lugar, vários lugares, embora uma enorme área. Depois, os lugares multiplicaram-se como antes se multiplicaram as mortes. Pouco faltava para ser um país inteiro e estava próximo de todos nós. As notícias que líamos já não eram iguais às anteriores. Arrepiou-se-nos a pele e a alma quando percebemos que os nome que liamos podiam ser dos que conhecemos. Eram dos que conhecemos. Que podiam ser nossos vizinhos os que morreram a fugir à frente de um fogo mais veloz do que eles. A proximidade começou a cercar-nos e já não havia meio para julgarmos que não era connosco. Não foi ainda com cada um de nós mas podia sê-lo. Já não testemunhávamos uma tragédia. Éramos parte dela, mesmo que ainda houvesse distância a separar-nos. Era a terra que pisámos muitas vezes, o ar com que aprendemos a respirar. Era, enfim, o país inteiro.

Ao contrário do poema de Brecht (“Primeiro levaram os negros...”; “Em seguida...”; “Depois...”), não teremos sido indiferentes. Importámo-nos sempre. Mas demorámos a perceber que o fogo era connosco. Que fustigava os corpos que nós próprios descarnáramos com o que andámos a fazer com este país fora de Lisboa.

Se este texto fosse escrito só com a razão, eu teria começado por falar sobriamente da economia dos territórios não-urbanos deste país. Não apenas da floresta e da agricultura, mas de tudo o que fica fora de poucos espaços urbanos — pequenas cidades, muitas vilas e até as periferias das cidades médias que deviam ser a ossatura do país e já não são. Não só de árvores a arder. Casas, fábricas, oficinas, máquinas. Pessoas. Tudo o que se deslaçou ao longo de escassas décadas e que desde há pouco tempo ficou abaixo dos limiares mínimos. De tudo o que constitui a urgência mais silenciada deste país. Territórios, pessoas, formas de vida, gente que sempre lá esteve e gente que regressou, atividades. Muitas coisas colocadas fora da agenda, campo calado de um pais deslumbrado com o turismo, esquecido da produção, centrado num único ponto, fixado nas transações.

Não julguemos, porém, que Portugal tem ignorado o seu território. Acontece é que só tem olhado para o urbano. E tem-no usado intensamente. Como mina a céu aberto. E criou todos os meios para isso. Nuns pares de anos, há poucas décadas, fizeram-se mais de 300 Planos Diretores Municipais, milhares de instrumentos de planeamento territorial inframunicipais, chamados planos de pormenor e planos de urbanização. Alterou-se a administração pública, tanto a central como a local. Legislou-se e criaram-se hierarquias funcionais. Formou-se um enorme aparato técnico: engenheiros, arquitetos, geógrafos, economistas. Revolveu-se o território, refez-se-lhe a forma e o uso. Ninguém falou de escassez. Todos promoveram a abundância e chafurdaram nela. Câmaras municipais, promotores imobiliários e construtores civis, bancos e profissões técnicas extraíram todas as rendas fundiárias urbanas que havia para extrair. Ninguém ignorou o território. Não faltaram meios nem fins.  

Já em décadas muito anteriores, um autêntico exército civil (e às vezes também militar) entrou pelo país adentro e, em nome de um Estado autoritário, fez estradas, ocupou baldios, expulsou populações, florestou zonas do país à bruta. Também não faltaram meios nem agentes.

Por que é que o país moderno só soube usar o seu território para um intenso extrativismo urbano? Por que é que o que se fez de forma lesta para o urbanismo não se faz para o espaço não urbano? Todos sabemos as respostas, elas são inúmeras e não é preciso repeti-las. Voltemos ao que é simples como as lágrimas e usemos a frase trivial mas incontornável: porque “não houve vontade política”. Melhor dito, porque o poder, as deliberações explícitas ou tácitas, foram aquelas e não outras. Porque se quis assim. Não foi por não podermos criar um exército de meios tão forte e capaz como o que foi posto ao serviço dos usos urbanos do território. Não foi por não ser possível intervir nos territórios que são pasto das chamas. Foi porque ninguém decidiu fazê-lo. Ninguém criou os instrumentos, definiu os meios e procedeu à intervenção necessária. Todos nos desinteressámos. O poder, sobretudo os poderes fáticos, são cegamente urbanos e vivem disso. Precisámos de tragédias para recuperarmos o senso?

Tudo o que é preciso fazer nos territórios devastados é possível fazê-lo em Portugal. É tão possível reconstituir os territórios não urbanos como foi possível explorar os urbanos e periurbanos. Assim haja quem decida. Não se invoque a propriedade, a maior parte da qual é passiva e não se sabe onde fica. Se se invocar a dificuldade lembremo-nos primeiro da facilidade com que se serviu o maná urbano ao longo de todo o país. E core-se de vergonha.

Estes fogos apenas descarnaram o país esquelético que fomos criando. Mataram os mais indefesos. É preciso agir. Mas, por favor, evitem-se agora as modernices. Já deve haver cabeças a pensar em project finance, transações sofisticadas, fundos rentabilizáveis a altas taxas. Há gente fina que conhece melhor do que ninguém a velha frase “um problema contém sempre uma oportunidade”. Já deve haver ansiosos a querer vender “serviços ambientais” ao Estado, talvez sob a forma de novas rendas fundiárias.

É de ação pública que temos de falar. Escrever na legislação recente a expressão “exploração florestal” onde só está “gestão florestal”. Esquadrinhar o território onde crescem árvores e arbustos com a mesma força com que se esquadrinhou o campo para os loteamentos urbanos. Mostrar que só há Estado quando ele palmilha montes e vales. Não quando a corte vai à aldeia. É de ação pública direta que eu falo. Usem-se os municípios. Mas não nos limitemos a descentralizar, usando o velho tique de entregar a outros o que é preciso fazer “quando elas mordem”. Acarinhem-se os produtores, os individuais e as empresas, que fazem da floresta vida. Tenho a certeza que há neste país muito saber e muitos técnicos para tudo isto. Mas é preciso querer. Querer mudar o país todo, do qual temos andado distraídos.

(Este texto foi escrito a pensar nos que conheço e perderam empresas e casas e viram vizinhos morrerem. E nos meus, nos que vivem na aldeia onde eu nasci e olham agora para aquela imensa e bela paisagem e só podem ver negro.)  

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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