Para começar do zero

Esta é a questão central: se a força de duas tragédias é suficiente para um Governo, agora mais frágil, fazer uma revolução. E em contra-relógio. Porque o próximo Verão está mesmo aí à porta.

Eu sei. Já é doloroso falar de incêndios. Já cansa falar do Governo. Mas quando um país está no meio de um trauma, é preciso fechar um capítulo para poder recomeçar. E o país precisa desse recomeço. Rapidamente.

Estamos ainda no momento -1 do “novo ciclo” exigido por Marcelo. António Costa aceitou, sem outra hipótese, a demissão irrevogável da sua ministra - levando em troca um nome irrecusável para Marcelo. Aceitou também indemnizar as vítimas, embora ainda não saibamos se também as 43 deste fim-de-semana. Reabriu o Orçamento de 2018, para lá caber a reforma que aí vem (e Centeno, estará convencido?).

No sábado será a vez de o Governo lançar a reforma que se segue. É certo que há uma base de trabalho (feita pela Comissão Independente), é claro que há um ultimato de Marcelo. Mas convém não termos ilusões: caminhando sobre terra queimada, não vai ser fácil começar do zero. Vamos às dúvidas.

Ponto um: a reforma que estará em cima da mesa foi preparada pela ministra que saiu - nas condições em que sabemos.  A ser verdade, foi também preparada antes de os técnicos independentes terem entregue as recomendações. Essa é, portanto, a primeira dúvida: quem chega à pasta, tem voto na matéria? E tem pensamento sobre ela?

Ponto dois: a reforma que os técnicos recomendam é, em larga medida, a que foi cortada a meio por António Costa, quando foi ministro da Administração Interna em 2006. E que era recusada até há escassos dias, pelo agora primeiro-ministro. Quem resiste tanto tempo, terá agora essa vontade? 

Ponto três: aquilo que os técnicos pedem é que se toque em interesses conflituantes - naquele sistema de combate ao fogo que temos hoje. Só alguns exemplos, para ilustrar o que aí vem: apontam para um comando único, juntando prevenção e combate (o que desagrada à Protecção Civil); sugerem a profissionalização e qualificação do combate (o que pressupõe uma revolução nos bombeiros e na sua dita Escola Nacional, uma questão sensível); pedem a revisão de alto a baixo do SIRESP (o que abre uma guerra com os operadores). Será preciso abrir uma guerra, quando tudo à nossa volta exige consenso.

Ponto quatro: a reforma florestal até já arrancou. Mas precisa de ser reaberta. Sabendo nós que é um dospontos onde a geringonça parte, haverá consenso possível?

Na prática, esta é a questão central: se a força de duas tragédias é suficiente para este Governo, agora mais frágil, fazer o que nenhum Governo antes quis ou conseguiu fazer - uma revolução. E em contra-relógio. Porque o próximo Verão está mesmo aí à porta.

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