Os portugueses: De Zé Povinho a simplesmente Povo

Os portugueses, neste momento, são um povo cansado, deprimido e em luto pelas mais de 100 vítimas mortais dos incêndios, a precisar de dizer um “NÃO” e tomar nas suas mãos o seu próprio destino.

Se o humorista e caricaturista Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905) fosse vivo, a sua crítica social seria bem mais demolidora do que aquela que utilizou, no seu tempo, para zurzir na monarquia constitucional e em todo o universo cultural e social da época. Ao criticar, durante décadas, a política e os políticos incompetentes e corruptos, desde as eleições setecentistas ao Ultimato Inglês, Bordalo Pinheiro apontou o “Zé Povinho” como a grande vítima do fisco – o “Zé Pagante” na linguagem corrente de hoje.

Para melhor compreensão da crítica de Bordalo Pinheiro, convém recordar a vida política e social da época. Os antigos partidos liberais eram em geral partidos de quadros, constituídos pelos “notáveis” ou “caciques” de cada localidade e região que punham a sua influência ao serviço do partido. O eleitor dava o seu voto ao “cacique” em troca de obter benefícios para si e sua família, como por exemplo, obter emprego, livrar os filhos do serviço militar etc. Era uma espécie de “feudalismo político”, porquanto a vida partidária não assentava tanto numa comunhão ideológica, mas numa “fidelidade pessoal”, reforçada por “solidariedade de interesses”. A luta pelo poder, aproveitando todos os pretextos, transformava a vida política numa permanente guerra civil.

No plano social e cívico, o povo luso da época, na sua esmagadora maioria, era um povo analfabeto, ignorante, falho de espírito crítico e suportando com paciência todos os desmandos dos que mandavam nele, resignado ante tudo e todos e só muito ocasionalmente explodia. Porém, num desses momentos de cólera, os portugueses acabaram por fazer o “manguito”, gesto obsceno, feito com os braços, significando, antes de mais, um “Não”. Esse “Não” tem o significado de uma recusa agressiva a tudo aquilo que o atormenta e carrega. Espancado pela polícia, tributado pela fiscalidade e sempre desprezado pelos políticos, considerados na altura como “gente matreira e desleal que só apaparica o “Zezinho” quando se trata de lhe extorquir o voto, após o que o enxota a pontapés no traseiro”. A encarnação lorpa e boçal do “Zé Povinho” não é só uma figura qualquer para despertar o riso e a gargalhada das multidões. Ele personifica também uma sociedade aviltada pela opressão dos grandes e dos poderosos. Para os seus contemporâneos, Rafael Bordalo Pinheiro era acima de tudo um resistente muito especial contra a realeza. Embora não fosse filiado do Partido Republicano, Rafael dera-lhe, de facto, uma dedicada e vigorosa ajuda no combate jornalístico, pelo lápis e pela caricatura, conta as práticas e o sistema monárquico.

Importa recordar as palavras de Ramalho Ortigão respeitantes ao “Zé Povinho”, as quais, atento o circunstancionalismo político, económico e social de hoje, mantêm plena atualidade: “Um dia, talvez ele mude de figura e também de nome para, em vez de se chamar “Zé Povinho”, se venha a denominar simplesmente “Povo”. Entretanto, novos impostos, novos discursos e novas promessas correrão na ampulheta do tempo, antes que chegue esse “dia tempestuoso”.

Com a revolução de Abril de 1974, pensou-se que, finalmente, esse “dia tempestuoso”, a que se refere Ramalho Ortigão, tinha chegado para lhe mudar o nome, passando então a chamar-se simplesmente “Povo”. Mas, o agravamento das condições económicas e sociais em que vivem muitos portugueses, fruto de uma incompetência política de muitos anos; uma democracia em decadência, minada pela corrupção nos altos cargos da administração e da política, bem como uma promiscuidade corrupta entre um certo poder político, económico e financeiro, (como evidenciam os multiplos processos pendentes na justiça) e ainda a incompetência demonstrada no ataque aos incêndios, leva-nos a concluir que afinal esse dia ainda não chegou, sendo pertinente recordar o “Zé Povinho” em tudo aquilo que ele possa representar na atualidade, já que os portugueses, neste momento, são um povo cansado, deprimido e em luto pelas mais de 100 vítimas mortais dos incêndios, a precisar de dizer um “NÃO” e tomar nas suas mãos o seu próprio destino. Povo chamamos nós àquele que manda, porque o Povo, para o ser, há-de ser soberano. 

    

 

 

 

 

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