Nuno Mendes é o Lisboeta

O chef da Taberna do Mercado, em Londres, acaba de lançar em inglês um livro de receitas que parte das suas memórias de infância e juventude em Lisboa.

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Andrew Montgomery

Nuno Mendes tinha 19 anos quando saiu de Lisboa. Na altura não pensava muito no que se comia ou como se comia na sua cidade. Foi só muitas décadas mais tarde que sentiu necessidade de voltar às suas memórias. E percebeu que elas continuavam lá, fortes – os cheiros, os sabores, os hábitos.

O chef português que se tornou famoso em Londres, onde hoje tem, entre outros projectos, a Taberna do Mercado com cozinha de base portuguesa, acaba de lançar em inglês Lisboeta, um livro, de receitas e não só, que parte dessas memórias (com fotografias do britânico Andrew Montgomery). “É um pouco baseado no que eu me lembrava de comer em Lisboa, ir ao café de manhã, comer uns salgadinhos ou um bolo com o café, petiscar ao final da tarde, coisas como o pica-pau ou a meia desfeita, que são únicas e têm uma história interessante. É a cozinha do desenrasca e tem piada por ser assim”, conta à Fugas.

Há muito tempo que vive fora de Portugal, mas nos últimos anos foi regressando cada vez com maior frequência. Durante essas ausências intercaladas com visitas foi vivendo sensações diferentes. “Quando fui para a Califórnia e comecei a trabalhar na área da cozinha sentia-me privilegiado porque conhecia o produto. Lembro-me de estar na escola [de cozinha] e haver pessoas que nunca tinham visto uma lula inteira, que quase não associavam a ideia de uma vaca a um bife.”

Ele, apesar de ser lisboeta, tinha uma avó alentejana e grande parte das suas memórias de infância têm a ver com ela. “A minha avó tinha uma boa amiga, as duas passavam o tempo todo a cozinhar e a conversar sobre cozinha. Eu tinha uns cinco ou seis anos e passava horas e horas a ouvi-las e a provar as coisas. Lembro-me de acordar de manhã e sentir o cheiro da levedura, dos pastéis de massa tenra.”

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O chef português Nuno Mendes Andrew Montgomery

Mais tarde, num desses regressos a Lisboa depois de uma ausência longa, sentiu-se decepcionado. Não encontrou aquilo de que se lembrava. “Havia uma diferença enorme na qualidade das coisas. Vi os hipermercados a tomarem conta de tudo, o pão a perder qualidade, ia aos sítios onde costumava ir antes e vi como estavam a modificar tudo. Isso chocou-me bastante.” Depois, quando o país mergulhou na crise, viu “as pessoas sem esperança, os campos abandonados”.

A isto somou-se o facto de estar a criar restaurantes em Londres – primeiro, o Loft e o Viajante, depois a Taberna do Mercado – e ter dificuldade em encontrar bom produto português. “Portugal era invisível. Eu via produtos que achava de qualidade inferior à dos portugueses, azeites, enchidos, mas que tinham muito maior presença. Em Londres eu não conseguia que os fornecedores fizessem chegar produto português em quantidades suficientes.”

Achou que, com a visibilidade que ele próprio conseguira já em Inglaterra, tinha o dever de fazer alguma coisa – de recuperar as suas memórias da cozinha de Lisboa, até porque “há poucas publicações feitas fora de Portugal que falem do produto português”. Foi assim que nasceu o Lisboeta, projecto que o fez regressar muito mais vezes, voltar às tascas mais tradicionais e perceber também que a cidade tinha saído da crise e estava a recuperar a auto-estima.

Quis fazer este projecto também por causa da morte do pai e do nascimento da filha, dois acontecimentos muito próximos no tempo e que o fizeram pensar na importância de manter uma ligação à sua cultura. “A minha filha ia ter um apelido português e percebi que tinha uma responsabilidade para com ela, de lhe contar uma história que era também dela e de proteger as coisas boas que temos.” Quer que os filhos “tenham orgulho de serem descendentes de portugueses” mesmo tendo nascido em Londres e de uma mãe sul-africana. “Gostava que eles se apaixonassem pelo país e conhecessem tudo de bom que cá temos.”

As receitas que escolheu são as da comida mais popular de Lisboa, os pratos que se encontram nas tascas. Mas, explica, “era importante que fosse um livro acessível, não pude usar certos produtos, como os percebes, por exemplo, porque sei que os ingleses vão ter dificuldade em encontrá-los.”

Está contente por ver que hoje não só há uma curiosidade crescente pela cozinha portuguesa mas que os portugueses estão também “mais confortáveis e mais abertos a mostrar o que é nosso”. E se tudo isto ajudar a que mais produtos portugueses cheguem a Londres e a outras partes do mundo, mais feliz ficará.

O livro agora lançado na edição inglesa em vários países é o primeiro de um projecto a longo prazo que vai continuar com outro volume sobre Portugal e um terceiro sobre a lusofonia.

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Andrew Montgomery
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