Vivamente, o Quebeque

Desde o final dos anos 50 albergou uma das expressões mais importantes e singulares da “modernidade cinematográfica”.

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A componente política explícita e assumida de un filme explosivo: Un Chat dans le Sac, onde Groulx equipara a luta dos francófonos canadianos à luta dos negros norte-americanos

É um dos momentos essenciais do Doclisboa: uma retrospectiva, co-organizada com a Cinemateca (onde decorrerão todas as sessões) do cinema do Quebeque, que desde o final dos anos 50 albergou uma das expressões mais importantes e mais singulares da “modernidade cinematográfica”, nomeadamente através da sua abordagem do documentário e dos métodos do cinema directo, mas de conhecimento ainda bastante lacunar para o comum dos espectadores. Não faltam, na retrospectiva, os “autores”: Pierre Perrault (a quem a Cinemateca já dedicou uma retrospectiva há cerca de 10 anos), Michel Brault, Claude Jutra, Gilles Groulx, porventura os nomes mais célebres e aclamados desta “escola canadiana”, e que foram responsáveis por três filmes, todos do princípios dos anos 60, que em conjunto foram decisivos para a “impressão digital” deixada pelo cinema do Quebeque, quer em termos de prática cinematográfica (no documentário ou para além das suas fronteiras estritas) quer em termos do estabelecimento de uma identidade cultural regional e essencialmente francófona – falamos de Pour la Suite du Monde (Perrault & Brault, 1963, a ver dia 20 às 19h00), retrato de uma comunidade piscatória ancestral na costa do Quebeque; de À Tout Prendre (Jutra, 1963, dias 20 e 25), que aplicava a técnica do cinema directo a um registo quotidiano e pessoal, quase diarístico; e de Le Chat dans le Sac (Groulx, 1964, dias 21 e 26), talvez o mais lídimo equivalente quebequense de um filme nouvelle vague, na forma de “dobrar” uma hipótese de romanesco com uma reflexão política, crua e reivindicativa, sobre a identidade regional (ou mesmo “nacional”, porque Groulx é um dos cineastas onde a questão do “nacionalismo” se põe, sem meias medidas).

Mas se não faltam os “autores”, a descobrir ou redescobrir, o estímulo do ciclo é também a sua vastidão: entre Outubro e Novembro (portanto já depois do fecho do Doclisboa), perto de uma cinquentena de títulos será mostrada, entre curtas e longas, compondo um panorama que cronologicamente se estende dos anos 50 aos nossos dias e onde ficará clara a tendência idiossincrática e auto-reflexiva do cinema do Quebeque. Em conversa com o Ípsilon, Richard Brouillete, um dos programadores, e ele próprio um autor representado nele (Trop c’est Assez, filme de 1995 sobre Gilles Groulx, a ver dia 27, é um dos títulos incluídos no ciclo), dá-nos um pouco de contexto para a emergência deste cinema e das suas características. Fala-nos do “momento fundamental” que foi a transferência da sede do National Film Board (o organismo estatal, e quase “soviético”, palavra de Brouillette, que praticamente sozinho assegurava a produção canadiana de cinema), em 1956, de Ottawa para Montreal. “O NFB existia desde 1939, tinha sido criado para os anos da II Guerra e a sua missão era propagandística; depois do fim da guerra a vocação manteve-se, agora para uma propaganda de paz: tratava-se de vender o Canadá aos canadianos, dizer-lhes que viviam no melhor país do mundo, etc”. Praticamente não havia francófonos a trabalhar para o NFB, e já em Montreal alguns dos primeiros filmes virados para a realidade local como The Days Before Christmas, de 1958, que abreu a retrospectiva a 19, são ainda assinados por cineastas anglófonos. Mas a mudança para Montreal permitiu a constituição das primeiras unidades de produção francófonas. Na sua maioria, diz Brouillette, "estes homens eram nacionalistas, e de certa forma socialistas, na medida em que eram movidos por uma crítica do capitalismo”. É preciso notar, continua, que os quebequenses “eram a classe operária” do Canadá (“juntamente com os imigrantes irlandeses e escoceses”), e que mesmo no Quebeque havia “uma enorme disparidade entre a minoria anglófona, rica e privilegiada, e a população francófona”. O objectivo destes cineastas era “a exposição desta discrepância através do sublinhar da identidade cultural francófona”. Era preciso, em primeiro lugar, “não serem censurados” pelas cúpulas dirigentes do NFB (que continuavam ser anglófonas, “e nem compreendiam o francês”), e um primeiro passo foi dado através do foco em actividades tradicionais e aparentemente banais (os tempos livres, o lazer, por exemplo os desportos de Inverno, como em Les Raquetteurs, de Brault e Groulx, a ver dias 19 e 24, aparecem muito ao longo destes filmes). Uma componente política explícita e assumida chega um pouco mais tarde, nesse filme explosivo que é Le Chat dans le Sac, onde Groulx equiparava (por exemplo citando James Baldwin, o “herói” de Eu Não Sou o Teu Negro) à luta dos francófonos canadianos à luta dos negros norte-americanos. Esse filme, diz Brouillette, foi “quase clandestino”: “o que tinham encomendado a Groulx era uma curta-metragem sobre o Inverno… filmou e montou à escondidas, e o que saiu é quase um manifesto independentista”.

Outros temas, como a relação com os povos nativos do Canadá, em Incident at Restigouche, (dia 20), ou Kanehsatake (dia 23), ambos de Alanis Obsomawin, ou a importância do cinema de animação, cujo maior símbolo, Norman McLaren, é evocado em Les Négatifs de McLaren (Marie Josée Saint-Pierre, dia 20), ou ainda uma perspectiva feminina singularmente combativa (Mourir à Tue Tête, de Anne Claire Poirer, dia 25, sobre a violação enquanto instrumento de dominação política, aparecerão ao longo deste programa inesgotável, que inclui ainda as expressões contemporâneas da tradição quebequense, como o bem conhecido Denis Cotê.

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