Um outro olhar sobre os incêndios e o país

O que nos dois grandes incêndios deste ano sobressaiu com muita força foi um desencontro cultural.

Não sou especialista de incêndios, do clima ou da floresta. A minha especialidade é em cultura portuguesa. E é desse ponto de vista que falarei de alguns aspectos da nossa cultura que penso que foram determinantes nos fogos deste ano, nomeadamente quando comparados com países que são semelhantes no clima, na agricultura ou na floresta: França, Espanha, Itália e Grécia. Entre as nossas características culturais, aquela que me parece mais incisiva é o terrível centralismo de Portugal. Centralismo político, económico (este está a abrandar), social, educativo, dimensões em que Portugal é Lisboa. Os diversos actores vêm para Lisboa, e não afirmam nem fazem retorno às suas regiões de origem. Um italiano é de Turino, Firenze, Napoli... É para lá que volta e é a sua região que tenta glorificar. Cada região desses países tem a sua cultura intelectual sendo embora os seus intelectuais nacionalmente reconhecidos.

Portugal não tem sequer cultura erudita nacional que não seja regional no sentido de popular. Temos por isso dificuldade em pensar, em elaborar intelectualmente. Como escrevia António José Saraiva, a tradição nacional é que a cultura da Corte é a cultura popular. A outra é importada, da França e hoje sobretudo de Inglaterra ou América. Somos ignorantes de nós mesmos e não o sabemos. Não temos a tradição de pensar e elaborar a nossa vida, o nosso real, o nosso quotidiano.

Se a integração europeia, a globalização nos mudaram para além do pensável (fizemos em 43 anos o caminho que a Europa fez em 200); se os jovens de hoje são cada ano mais desconhecidos para as gerações de mais de 60, 65 anos; se adquirimos as praticalidades técnicas mundiais com a facilidade que dá o desenrasca português próprio de quem não tem cultura antiga; o mesmo não se pode dizer dos habitantes das cidades, vilas e aldeias que tinham uma cultura forte a que ainda hoje se agarram para sobreviver e mesmo para existir humanamente. O que nos dois grandes incêndios deste ano sobressaiu com muita força foi exactamente esse desencontro cultural: por um lado, os habitantes que reagiam, perplexos, com regras e práticas do seu mundo antigo; por outro, intelectuais e gentes do poder incapazes, porque não habituados a elaborar em termos de pensamento actual o que estava a acontecer.

É por isso que penso que a grande e mais urgente reforma política estrutural é a descentralização/regionalização. Mas não a fingir. Os governos e os partidos têm de ser capazes de largar poder efectivo, entregando-o nas mãos das regiões. O passo já dado nas autarquias mostrou-se frutuoso. Mas é preciso ir muito mais além. É preciso que os partidos percebam que entre o centralismo e a autogestão existe um espaço intermédio que é a capacidade das regiões crescerem, terem orgulho de si, terem poder efectivo na sua zona sem esquecer claro a solidariedade nacional que o governo de Portugal deve implementar. É preciso que seja bom e natural ser-se do Algarve ou do Minho, alentejano ou coimbrense e ter orgulho de viver lá. É preciso que isso não nos faça sentir menos português.

Salazar escreveu que um bom governante é como uma boa dona de casa, tem sempre muito que fazer. Gostava que os governantes de Portugal deixassem de ser boas donas de casa, que querem controlar tudo, que gritam pelo papel no chão... Tanto mais que só mulheres e antigas, claro, têm vocação para isso. Se até aos anos 60, durante séculos, os homens deixaram o país, que remédio tiveram elas senão serem mães e pais. O feitio ficou e ainda paira. A maneira de construir uma masculinidade em Portugal passa, em meu entender, por deixar as regiões ocuparem-se realmente do seu quotidiano, do seu real, da sua história, do pensar tudo isso. E os órgãos do Estado dedicarem-se mais à tarefa de governar os humanos do que à tarefa de gerir os bens e os serviços. Isso faria de nós um verdadeiro país capaz de honrar a sua história brilhante.

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