O Estado e o resto (enquanto ardemos)

No drama dos incêndios, Portugal dividiu-se em dois: o Estado e o resto. Cabe agora ao Estado ultrapassar tal divisão. Mas com actos urgentes, não com mais retórica.

Há quase três décadas, quando Lisboa foi abalada pelo terrível incêndio do Chiado, escrevi uma crónica (estava, ainda, na revista do semanário Expresso) intitulada “Até que arda a paciência…” Veio-me à memória pelo título, nestes dias em que os incêndios renascem dantescos e em que, mais uma vez, se repetem erros que já deviam ter sido há muito votados à irrelevância. Mas empurrado pelo título lá a descobri, arrumada no silêncio dos arquivos. Foi publicada no dia 3 de Setembro de 1988 e nela dizia, a dado passo, o seguinte: “A inconsciência dos portugueses não tem paralelo. Tal como não tem paralelo o seu esforço quase acéfalo de trabalhar o ‘desenrascanço’, de cultivar a lei do ‘fazer pela vida’, de iludir a realidade quando esta se torna incómoda.” Do que se sabia então de tal incêndio, era já possível apontar algumas causas que, combinadas, provocaram o enorme desastre que se viu: sobrecarga térmica, ausência de alarmes contra incêndio, desrespeito pelas mais elementares regras de segurança, inércia quase total das vistorias. Isto em plena capital do país, melhor, em pleno coração da capital do país.

Olhamos agora para as dolorosas tragédias que martirizam o interior, para as muitas mortes, para os indescritíveis dramas pessoais, para as vultuosas perdas (de bens, de animais, de poupanças e memórias de toda uma vida), e torna-se já difícil, ou inútil, articular ou procurar a palavra certa, porque ela na verdade não existe. O “nunca mais” de ontem (e o ontem foi Pedrógão, mas também as tantas catástrofes passadas antes dele) transformou-se, aos nossos olhos, perante a absoluta inépcia dos mandantes, num “há sempre mais”. E dói, quase repugna, ouvir o que se ouviu (ao secretário de Estado, à ministra, ao Primeiro-ministro), não porque os governantes sejam os culpados directos dos incêndios, mas porque revelaram o mais insensato desprendimento da dor real da tragédia. Não é possível, como fez António Costa com a sua costumeira bonomia, dizer que agora é preciso reconstruir, porque isso significa iludir o mais importante; reconstruir é sempre preciso, mas antes há que acudir às muitas urgências, humanas, económicas, ambientais, que a tragédia acumulou. E é preciso olhar para os incêndios não como algo passado (foi esse o erro face a Pedrógão, o julgar-se que tinha o último em tão terrível escala) mas como algo presente, um perigo que não passou, que pode repetir-se, que exige medidas de emergência reais, não simples promessas de reconstrução (tão fáceis) ou de que “agora” (e reforcem-se as aspas neste “agora”) é que a reforma das florestas vai avançar.

Esta é uma batalha dura, já se percebeu. Olhá-la com a mesma distância com que se olha outra qualquer tarefa do Estado é pura inconsciência. Por falar em Estado: pelo que se viu e ouviu (e quão dolorosa é a escuta das comunicações no terreno, entre bombeiros, já teledifundida), o Estado esteve ausente. Não o sentiram as populações no meio da sua aflição, não o sentiram os bombeiros (voluntários, onde se exige, há muito, profissionais), não o sentiram os empresários e trabalhadores que viram arder os seus bens e o seu sustento, não o sentiram os que, ao contrário do que sugeriu um secretário de Estado que já não o é, são sempre mais “pró-activos” na sua defesa, e na dos seus bens, do que qualquer governante, embora por falta de meios se vejam impotentes face ao “monstro” que avermelha florestas e horizontes.

No final da crónica citada no início deste texto, escrevia-se: “Falemos de incêndios até que arda a paciência. Isto, claro está, para evitar que arda o resto.” Pois no momento em que nos encontramos já ardeu a paciência e o resto. Tardam medidas firmes, sobram as falhas e a incúria do costume. Até quando, não se sabe. Houve um inquérito, por sinal demolidor, há promessas, mas Portugal ainda arde. Há-de confiar-se, como de costume, na “sorte”: a chuva vindoura aplacará o fogo. Mas é bom não esquecer que o muito que ardeu, e se perdeu nas chamas, tem consequências a prazo: as águas hão-de levar as cinzas para os rios e ribeiras, há empresas que tardarão a arrancar, há gente sem casa e sem trabalho, muitos milhões de euros de prejuízos e dores que nenhuma indemnização pagará.

Neste drama, Portugal dividiu-se em dois: o Estado e o resto. Inépcia versus desamparo e desalento. Cabe agora ao Estado ultrapassar tal divisão. Mas com actos urgentes, não com mais retórica.

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