Ninguém tem a chave para o consolo, mas Trump insiste em ir contra a porta

Presidente norte-americano volta a envolver-se em polémica com a família de um militar morto em combate. Trump afirma que as críticas são apenas aproveitamento político.

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O Presidente dos EUA disse que Obama não telefonava às famílias de militares mortos em combate SHAWN THEW/EPA

Desde 20 de Janeiro, quando Donald Trump jurou defender a Constituição dos Estados Unidos com a mão esquerda em cima de duas Bíblias, tem sido difícil ver o calendário a passar sem uma polémica a entrar ou a sair da Casa Branca. Mas, desta vez, as declarações do Presidente norte-americano arrastaram o país para um beco particularmente sensível: a forma como o mais alto representante da nação deve tratar as famílias dos militares mortos em combate.

Tudo começou segunda-feira, durante uma longa conferência de imprensa que Donald Trump deu no jardim mesmo em frente à Sala Oval, na Casa Branca, em que falou de quase tudo – da situação em Porto Rico à investigação sobre a Rússia. Mais ou menos a meio das perguntas e respostas, um jornalista quis saber por que razão Trump não tinha ainda feito qualquer comentário público sobre a morte de quatro militares norte-americanos no Níger, no início de Outubro.

"Escrevi cartas a todos. Já foram enviadas, ou vão ser enviadas esta noite, mas foram escritas durante o fim-de-semana. Vou telefonar aos pais e às famílias dentro de algum tempo, porque é isso que tenho feito", disse o Presidente norte-americano.

Se a resposta tivesse terminado aqui, talvez não estivéssemos a falar sobre uma nova polémica, mas Donald Trump quis ir mais longe: primeiro disse que "o Presidente Barack Obama e outros Presidentes não telefonaram" aos familiares dos soldados norte-americanos mortos, e um pouco mais tarde, ainda durante a mesma conferência de imprensa, disse que não sabia se Obama tinha ou não telefonado.

"Penso que o Presidente Obama telefonou em algumas ocasiões, e em outras talvez não tenha telefonado, não sei. Foi isso que me disseram."

Mas a tentativa de voltar atrás não foi bem-sucedida: para todos os efeitos, o Presidente Trump tinha acabado de acusar o seu antecessor de ser menos atencioso do que ele em relação às famílias de militares mortos em combate – um tema muito sensível para a generalidade dos cidadãos norte-americanos, quer sejam a favor ou contra uma determinada guerra travada pelo seu país. E, para além de ter tentado posicionar-se como um Presidente mais empático e sensível do que Obama, Trump fez passar a ideia de que telefonou a todas as famílias dos militares que foram mortos desde que chegou à Casa Branca.

O problema é que estas duas ideias foram rapidamente desmentidas pelos factos: por um lado, Barack Obama telefonou e escreveu cartas a familiares, e esteve presente na recepção aos corpos de vários militares norte-americanos durante os seus dois mandatos; por outro lado, algumas das famílias dos 20 militares mortos desde que Donald Trump chegou à Casa Branca garantem que nunca receberam nem um telefonema nem uma carta do actual Presidente.

Mas a polémica estava apenas a começar, sempre alimentada pelo próprio Donald Trump. No dia seguinte, terça-feira, o Presidente norte-americano deu uma entrevista à Fox News Radio, e não só repetiu o que disse sobre Barack Obama no dia anterior, como empurrou o seu chefe de gabinete, o general John Kelly, para o ringue de lama de que ele sempre quis fugir – a discussão pública sobre a morte em combate do seu filho, o tenente Robert Kelly, no Afeganistão.

"Acho que telefonei a cada uma das famílias de alguém que morreu. Quanto a outros representantes, não sei. Pode perguntar ao general Kelly se ele recebeu um telefonema de Obama", disse Trump.

Conhecido pela forma intimista como lidou com a morte do filho, o general Kelly ainda não comentou esta troca de argumentos na praça pública iniciada pelo seu Presidente – de acordo com pessoas ligadas à Administração Obama, citadas sob a condição de anonimato, o ex-Presidente não telefonou a John Kelly, mas seis meses depois da morte de Robert Kelly o general esteve num almoço na Casa Branca de homenagem a familiares de soldados mortos e sentou-se na mesa de Michelle Obama.

"Your guy"

Nesse mesmo dia, terça-feira, Trump telefonou a Myeshia Johnson, mulher de um dos militares mortos no Níger no dia 4 de Outubro, para lhe dar os sentimentos – um gesto que não é obrigatório, mas que faz parte da tradição e é bem visto pelo público em geral.

O telefonema apanhou Myeshia Johnson e a madrasta do sargento LaDavid Johnson numa limusina, enquanto esperavam pela chegada do caixão num aeroporto de Miami, ao lado de uma velha amiga da família, a congressista do Partido Democrata Frederica S. Wilson – e o que Donald Trump disse foi ouvido por todas elas através do sistema de alta voz.

"A Myeshia passou o tempo a chorar, quase numa posição fetal. Ele disse que nós sabíamos no que ele se tinha metido, mas que ainda assim devia ser muito doloroso. As palavras dele foram estas", disse quarta-feira a congressista Frederica S. Wilson.

Depois disso, a polémica ganhou ainda mais volume: Donald Trump foi a correr para o Twitter chamar mentirosa à congressista, e garantiu que não disse nada daquilo; mas a madrasta do sargento LaDavid Johnson, Cowanda Jones-Johnson, confirmou a versão da congressista e disse que se sentiu ofendida com a forma como o Presidente norte-americano tratou o assunto – para além da frase que os seus críticos dizem ser insensível e desnecessária num momento de dor, Trump terá passado os três a cinco minutos da conversa telefónica sem nunca se referir a Johnson pelo nome, antes repetindo a Myeshia elogios sobre "your guy" (qualquer coisa como "o teu tipo", ou "o teu homem").

Acusações de insensibilidade à parte, há muitos exemplos de ocasiões em que os Presidentes norte-americanos não estiveram à altura de lidar com famílias devastadas pela notícia da morte de um filho, pai ou marido – nos últimos dias, os jornais norte-americanos encheram-se de histórias de familiares que dizem ter sido apoiados ou ficado desiludidos com as mensagens de Presidentes como Jimmy Carter, Ronald Reagan, George W. Bush, Barack Obama e o próprio Donald Trump.

"Sempre foi difícil para qualquer Presidente, mas em certa medida tem ficado cada vez mais difícil à medida que o número de baixas vem diminuindo. Cada um deles pode ser individualizado a um nível muito maior", disse ao The New York Times Peter D. Feaver, especialista da Universidade de Duke na área do relacionamento entre civis e militares.

Sem provas

Em última análise, não está tanto em causa a forma como o Presidente norte-americano falou com a viúva do sargento Johnson (nem o facto de não ter telefonado a todas as famílias), mas mais a forma como lidou com as consequências dessa conversa, tentando prejudicar a imagem do seu antecessor, arrastando o reservado general Kelly para a discussão e vendo-se na posição de ser desmentido todos os dias.

Na manhã de quarta-feira, o Presidente norte-americano escreveu no Twitter que a congressista Frederica S. Wilson "fabricou completamente" o que ele disse à mulher do sargento Johnson. E acabou o tweet de forma categórica: "Tenho provas." Três horas mais tarde, a porta-voz da Casa Branca, Sarah Huckabee Sanders, respondia a uma pergunta sobre se a conversa tinha sido gravada: "Não, mas estavam várias pessoas da Administração na sala durante a chamada, incluindo o chefe de gabinete, o general John Kelly."

Esta não é a primeira vez que Donald Trump se vê no meio de uma polémica com veteranos de guerra ou familiares de militares mortos em combate.

Pouco depois de ter anunciado a candidatura à Casa Branca, no Verão de 2015, Trump disse que não considerava o senador John McCain um herói de guerra – porque foi capturado durante a guerra do Vietname. Um ano mais tarde, no Verão de 2016, o então candidato oficial do Partido Republicano via-se no meio de uma discussão com a família de um soldado norte-americano morto no Iraque em 2004 – num discurso no último dia da convenção do Partido Democrata, o pai de Humayun Khan, Khizr Kahn, disse que o seu filho nem teria entrado nos Estados Unidos se Trump fosse Presidente; em resposta, Donald Trump disse que Khizr Kahn foi manipulado por Hillary Clinton e sugeriu que a mãe do soldado norte-americano nascido nos Emirados Árabes Unidos não falou porque é muçulmana.

Apesar de o tratamento dos veteranos de guerra e das famílias dos mortos em combate ser um tema muito sensível para a generalidade dos norte-americanos, as polémicas que envolveram Donald Trump não lhe travaram o caminho até à Casa Branca – foi nomeado candidato do Partido Republicano depois de ter humilhado John McCain e foi eleito Presidente dos Estados Unidos depois de ter entrado em discussão com a família Khan.

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