Ferrovia de bitola “europeia” em Portugal?

Uma rede como a que aqui se propõe custaria cinco mil milhões de euros, pouco mais de um terço do custo do “TGV” de Sócrates.

Recentemente tem-se falado muito de uma rede ferroviária de bitola “europeia” em Portugal. Foi publicado um “manifesto”, houve declarações de responsáveis do setor, publicados vários artigos, surgiu até a informação da promessa do apoio do Presidente da República a uma conferência sobre o tema.

Convém esclarecer desde já que ferrovia de bitola “europeia” é coisa que não existe. Na UE, além de soluções singulares em linhas locais, existem três grandes sistemas de bitolas ferroviárias (distância entre carris). Além da bitola “ibérica” usada em Portugal e em Espanha, e da bitola “russa”, usada nos países da Europa de leste, nomeadamente na Polónia e nos países bálticos, alguns, abusivamente, designam de bitola “europeia” a que é usada nos países do centro da Europa: França, Alemanha, Itália, etc. Em rigor, esta deverá ser simplesmente designada de bitola “internacional”, ou melhor, bitola UIC, pois é a preconizada por aquela entidade (UIC, International Union of Railways), sendo adotada um pouco por todo o mundo, nomeadamente, EUA e China.

Com a ansia de realçar a imperiosidade de Portugal dispor de uma rede ferroviária de bitola “europeia”, os autores do “manifesto” sustentam que, em face das transformações em curso em Espanha, Portugal tornar-se-á em breve numa “ilha ferroviária”, e assim condenado ao isolamento. Embora o argumento impressione não é convincente, pois países da UE que são realmente ilhas ferroviárias, como a Irlanda e a Finlândia, por exemplo, apresentam níveis de desenvolvimento muito superiores ao nosso.

Entretanto, responsáveis do setor vieram dizer que não precisamos de uma rede ferroviária em bitola UIC, pois, segundo eles, existem soluções técnicas alternativas para prestar os mesmos serviços. Além da utilização de argumentos falaciosos, é chocante ver que essas pessoas são as mesmas que foram responsáveis pela rede do “TGV” no tempo de José Sócrates (que era em bitola UIC), onde foram gastos centenas de milhões de euros e nem um metro de linha foi construído.

É sabido que a rede ferroviária portuguesa, além da peculiaridade da bitola, tem traçado antigo, pois foi construída ainda na segunda metade do séc. XIX, pelo que apresenta limitações de exploração. Contudo, a introdução da ferrovia representou uma autêntica revolução em Portugal, permitindo a circulação de bens e principalmente de pessoas, que deixaram de ficar confinadas aos sítios onde nasceram. O interesse foi tal que o país se encheu de linhas férreas, grande parte de fraca rentabilidade e por isso muitas foram sendo paulatinamente encerradas. É que, logo a seguir, a partir de meados do séc. XX, teve lugar outra revolução, esta mais marcante ainda, a massificação do transporte rodoviário, a qual permitiu a emancipação dos cidadãos como homens livres: o automóvel particular. Como alguém disse: “Agora até os pobres têm automóvel.”

Assim, no Portugal democrático, sucessivos governos, na ansia de “dar” às pessoas o que achavam que elas queriam para depois lhes “sacar” os votos, encheram o país de novas estradas e autoestradas. Para se ter uma ideia, Portugal, que ocupa o 19.º lugar em termos de rendimento per capita na UE, possui hoje uma das melhores redes rodoviárias do mundo!

O verso da moeda é que isto foi conseguido à custa de um endividamento colossal, pelo que Portugal é hoje o país mais endividado (per capita) do mundo, mais de 700 mil milhões de euros, quatro vezes o valor do PIB. Só a dívida do Estado ultrapassa já os 250 mil milhões de euros, tendo, apesar do apregoado sucesso do Governo, aumentado mais de 20 mil milhões no último ano e meio, isto é, mais de 10% do PIB, e os juros custam já anualmente mais de oito mil milhões de euros, ou seja, 10% dos nossos impostos.

É inegável que a existência das mesmas bitolas ferroviárias facilita o trânsito de mercadorias e de pessoas entre países, com obvias vantagens. Como grande parte das nossas transações comerciais é com os países do centro europeu e a Espanha está de facto a adaptar a sua rede ferroviária para a tornar compatível com a desses países, será obviamente vantajoso para Portugal dispor de uma rede em bitola UIC. O grande desafio é arranjar uma solução que consiga um bom equilíbrio entre os benefícios potenciais e os investimentos necessários.

Esta é uma matéria sobre a qual venho refletindo e procurado dar o meu contributo cívico há vários anos, tendo publicado dezenas de documentos e artigos de opinião sobre o assunto. Num dos últimos, publicado na edição do Diário de Notícias de 20/12/2013, intitulado “Grandes Projetos: Haja Juízo!”, defendo um plano para essa rede, que se encontra perfeitamente atual.

De acordo com esse plano, a rede de bitola UIC deverá servir para o transporte de mercadorias, mas também de passageiros, em Alta Velocidade, nos trajetos Lisboa-Porto e Lisboa-Madrid. Será genericamente constituída por dois eixos horizontais: o corredor Lisboa-Caia, com continuação para Madrid e ligações para os corredores Valladolid- Irun e Saragoça-Barcelona, e o corredor Pampilhosa-Vilar Formoso, com continuação pelo corredor Valladolid-Irun; e um eixo vertical, o corredor Porto-Lisboa-Sines, com ligações também aos portos de Leixões, Aveiro e Setúbal.

A linha Lisboa-Caia será de via dupla e bitola UIC, nova entre Poceirão e Caia; no troço Lisboa-Poceirão será usada a linha atual, convertida para bi-bitola (com três carris) e com passagem pela ponte 25 de Abril, dispensando assim a construção de uma nova travessia do Tejo. A linha Lisboa-Porto será nova e de via dupla; no troço entre Lisboa e Vila Nova da Rainha será usado o canal da linha do norte, ocupando duas das quatro vias existentes na maior parte desse troço. A linha Pampilhosa-Vilar Formoso será a atual linha da Beira Alta, convertida para bi-bitola; como servirá essencialmente para o transporte de mercadorias, o traçado atual, com pequenas correções, serve perfeitamente e o tráfego previsível nunca justificará mais que uma via. 

A rede de bitola UIC terá cerca de 900 quilómetros de extensão, dos quais menos de 600 serão novos, pertencendo os restantes à rede existente, convertidos para bi-bitola. As duas redes interligam entre si nas estações (as quais serão comuns), bem como em plataformas logísticas localizadas em pontos estratégicos. Em Lisboa, a estação de passageiros será em Entrecampos, um sítio central. O custo dessa rede será de cerca de cinco mil milhões de euros, ou seja, pouco mais de um terço do custo da rede do “TGV” de José Sócrates.

Quanto ao financiamento, Portugal deverá aproveitar ao máximo os fundos da rede transeuropeia de transportes (RTE-T), estabelecendo uma calendarização das obras compatível com as disponibilidades financeiras do país. Mas não devemos perder mais tempo. Com a revolução que se avizinha dos grandes camiões a gás e eletricos, as mercadorias poderão passar a ser vantajosamente transportadas pelo modo rodoviário, rentabilizando investimentos já feitos.

Um grande debate sobre esta temática será obviamente bem-vindo e pela minha parte estou disponível para dar o meu contributo. Está visto que esquemas manhosos não garantem futuro aos portugueses. Só temos um caminho: planeamento sério e trabalho rigoroso.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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