Morreu a actriz Danielle Darrieux, um Stradivarius do cinema francês

Tinha 100 anos e foi uma das grandes actrizes francesas, a quem Hollywood nunca deslumbrou. Aos 80 anos era ainda cabeça de cartaz, ao lado de Deneuve e Huppert.

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Danielle Darrieux em 1952, na fotografia de promoção do filme Operação Cícero, de Mankiewicz DR

Danielle Darrieux, nome lendário do cinema francês, morreu na terça-feira, aos 100 anos, noticia a Agência France Presse.

Na lista de realizadores com quem trabalhou destacam-se nomes como Joseph L. Mankiewicz, Max Ophüls, Jacques Demy (foi, entre outras personagens marcantes, a Yvonne do recentemente restaurado, e exibido entre nós, As Donzelas de Rochefort) e Claude Autant-Lara, mas também François Ozon, um dos jovens cineastas que seduziu quando já era avó, incluindo-a em Oito Mulheres. Darrieux, lembra o diário Le Figaro, “desafiou os tempos” e  “aos 80 era cabeça de cartaz. Um milagre”.

Nos obituários que surgem esta quinta-feira na imprensa francesa, lembra-se o seu percurso fulgurante, que teve início em 1931 com O Baile, de Wilhem Thiele, quando Darrieux tinha apenas 14 anos. Seis anos mais tarde, a mulher a quem todos reconheciam o charme, e, sobretudo, o talento, tinha já chegado a Hollywood para fazer o seu primeiro filme americano, cujo título, escreve agora o mesmo Figaro, traduz na perfeição o que ela representou para o público ao longo dos seus 80 anos de carreira – La Coqueluche de Paris (Henry Koster, 1938).

Com um rosto que parecia feito para aparecer no grande ecrã, DD – sim, muito antes de Brigitte Bardot já era carinhosamente conhecida pelas iniciais do seu nome, tanto em França como nos estúdios americanos com que trabalhou (Universal, MGM, United Artists) – começou por assumir papéis de jovens mulheres ingénuas e rapidamente passou aos de protagonistas fortes, apaixonadas, em dramas históricos como Mayerling (1936), filme de Anatole Litvak sobre o amor trágico da jovem condessa Maria Vetsera e do arquiduque Rudolfo da Áustria, e Katia (1938), de Maurice Tourneur, em que veste a pele da amante do czar Alexandre II.

O sucesso mundial de Mayerling abriu-lhe as portas de Hollywood, mas Darrieux continuou a trabalhar também com cineastas franceses e rapidamente regressou a casa para entrar em produções dirigidas por Henry Decoin (Abus de Confiance e Battement du Coeur) e Max Ophüls, talvez um dos cineastas que mais impacto tiveram na sua carreira.

Com Ophüls foi uma mulher casada, burguesa, em A Ronda (1950), uma prostituta em O Prazer (1952), e uma aristocrata frívola que se vê forçada a vender uns brincos que lhe oferecera o marido para pagar dívidas em Madame de… (1953), naquele que foi certamente um dos papéis da sua vida.

No ano de O Prazer, 1952, a actriz trabalharia também com Mankiewicz em Operação Cícero, um filme de espiões em que voltava a ser uma condessa, Anna Staviska, contracenando com James Mason, uma das estrelas da Hollywood da época.

Para alguns críticos é este filme americano que marca o arranque da fase de maturidade da sua carreira, em que forma com Gerard Philippe um par fétiche, o de O Vermelho e o Negro, filme de Autant-Lara com base na obra homónima de Stendhal, e o de Pot-Bouille (1957), de Julien Duvivier, a partir do romance homónimo de Émile Zola, dois grandes sucessos de crítica e de público.

Na década seguinte, a Nouvelle Vague (inevitavelmente) olha para ela. Primeiro Chabrol em Landru (1962) e, depois, Demy no já citado As Donzelas de Rochefort (1967). No entanto, a intensidade da sua carreira cinematográfica não impede que Danielle Darrieux continue a subir aos palcos, onde se estreou em 1937 com Jeux Dangereux, dirigida por um dos homens com quem viria a casar-se, Decoin. Na mesma década de 60 entra, por exemplo, em La Robe Mauve de Valentine, a convite da escritora Françoise Sagan, que trabalhara no filme de Chabrol.

Voltaria a trabalhar com Demy em Une Chambre en Ville (1982), projecto que o cineasta já tinha tentado montar, sem sucesso, depois de, pela primeira vez na vida, se ter oferecido para um papel, conta o jornalista Philippe Lançon num artigo do diário Libération, de 1995. Quer ser a baronesa Margot Langlois, personagem que o realizador pensara atribuir a Simone Signoret – jamais se atreveria, confessará mais tarde Demy, a propor-lhe o papel de uma alcoólica.

“Eu sou um instrumento”, diz Darrieux a Demy em 1982, lembra Lançon no artigo em que lhe traça o perfil, quando esta mulher/actriz “frágil, discreta, secreta” já anda perto dos 80 anos. “É preciso saber tocar neste instrumento, agora, ou se sabe tocar ou não se sabe.” Um instrumento, sim, dir-lhe-á o cineasta fazendo referência ao seu imenso talento, “mas um Stradivarius”.

E um “instrumento” que se revela também na canção – nas comédias musicais em que participa é com frequência a única actriz que não precisa de ser dobrada –, embora os prémios que recebe ao longo da carreira sejam como actriz (Césares e Molières). Em Oito Mulheres, filme em que contracena com Catherine Deneuve, Isabelle Huppert, Emmanuelle Béart, Fanny Ardant, Virginie Ledoyen, Ludivine Sagnier e Firmine Richard, François Ozon põe DD a fechar o filme, cantando um poema de Louis Aragon musicado por Georges Brassens, Il n'y a pas d'amour heureux.

Ozon é, aliás, um dos realizadores que sempre assumiram o seu fascínio por Darrieux. Quentin Tarantino é outro. Numa entrevista à revista Les Inrocks, o cineasta americano explica por que razão decidiu incluir uma referência à actriz no seu filme Sacanas sem Lei: “É o ícone feminino absoluto do cinema francês da época [anos 1930/40].”

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