“O Inferno não deve ser assim”

As matas nacionais da zona de Leiria são hoje uma mancha negra de árvores calcinadas. A areia arde, o cheiro a maresia mistura-se com o do queimado. O fogo entrou em Vieira de Leiria e queimou casas, com o mar ali ao pé.

Fotogaleria
Adriano Miranda
Fotogaleria
Adriano Miranda
Fotogaleria
Adriano Miranda
Fotogaleria
Adriano Miranda
Fotogaleria
Adriano Miranda
Fotogaleria
Adriano Miranda
Fotogaleria
Adriano Miranda
Fotogaleria
Adriano Miranda
Fotogaleria
Adriano Miranda
Fotogaleria
Adriano Miranda
Fotogaleria
Adriano Miranda
Fotogaleria
Adriano Miranda
Fotogaleria
Adriano Miranda
Fotogaleria
Adriano Miranda
Fotogaleria
Adriano Miranda
Fotogaleria
Adriano Miranda
Fotogaleria
Adriano Miranda
Fotogaleria
Adriano Miranda
Fotogaleria
Adriano Miranda
Fotogaleria
Adriano Miranda
Fotogaleria
Adriano Miranda
Fotogaleria
Adriano Miranda
Fotogaleria
Adriano Miranda
Fotogaleria
Adriano Miranda
Fotogaleria
Adriano Miranda
Fotogaleria
Adriano Miranda
Fotogaleria
Adriano Miranda
Fotogaleria
Adriano Miranda
Fotogaleria
Adriano Miranda
Fotogaleria
Adriano Miranda

Salete Ribeiro tinha planeado fazer “uma festinha” na tarde desta terça-feira, na sua casa em Vieira de Leiria. Seria para celebrar o aniversário da mulher de cabelos curtos, brancos e lisos: 78 anos. Agora, enquanto olha as ruínas de parte da casa, já não há qualquer espírito para festa. “Fartei-me de chorar”, diz, quando recorda o momento em que, na tarde de segunda-feira, regressou a casa e se deparou com os estragos causados pelo fogo.

O presidente da Câmara da Marinha Grande, Paulo Vicente, já o dissera na segunda-feira: 80% das matas nacionais da zona de Leiria tinham ardido. O cenário é desolador. A areia, descobre-se, afinal também arde. Está negra e as árvores são quase todas escombros retorcidos que sobram na paisagem. No ar há um odor estranho, de queimado misturado com a maresia e na zona de Vieira de Leiria, onde há árvores baixas de troncos vergados pelo vento e agora enegrecidos, até é possível ouvir o mar a avisar que está ali. Do chão saem pequenas nuvens de fumo branco, resquícios do fogo que os bombeiros vão vigiando, e que dão a impressão de que todo o solo está assente sobre um enorme vulcão, pronto a abrir-se para abocanhar a paisagem.

Em quilómetros e quilómetros de trajecto nas matas nacionais, só perto de São Pedro de Moel foi possível encontrar um núcleo de verde intacto. O tapete de fetos emaranhados uns nos outros assusta, porque é combustível puro. O resto é cinza, como confirma António Paulo, de 51 anos, parado a olhar um campo desfeito pelas chamas. “Nunca tinha visto uma coisa assim. Estava Suão [vento sul], começou tudo a arder. Os bombeiros abafavam aquilo e começava logo outra vez a crescer”, conta o agricultor, lembrando que, no domingo, partira da sua aldeia de Pilado antes que o fogo chegasse.

PÚBLICO -
Aumentar

Em Vieira de Leiria, Sónia Ribeiro, filha de Salete, também partiu. “Pelas 3h00 começámos a ver o fumo, mas parecia longe, e ainda estive duas horas a passar a ferro, mas aquilo começou a aumentar e eu a pensar: ‘Isto não está bem, está muito forte’. Comecei a ficar mesmo preocupada”, diz. Sem que lhe tivessem dito para o fazer, levou a filha de quatro anos, a mãe e uma tia para a casa de familiares em Monte Real. Regressou às 20h30 e diz que ainda conseguiu entrar nos anexos: “Peguei num trabalho da escola da minha filha que tínhamos estado a fazer, mas tive que sair. Era só fogo. Pessoas a fugir a pé, a chorar, a gritar. Olhe, exactamente como temos visto na televisão”, diz.

Com o mar ali ao lado, parecia impossível que as imagens dramáticas da fuga das chamas chegassem a Vieira de Leiria, apesar de não ser a primeira vez que o pinhal arde – em 2003, já as chamas tinham destruído parte do arvoredo. Em vários espaços que já foram relva, no centro da vila, no meio das casas, há agora terreno queimado. Sónia vai mostrando no telemóvel como era o anexo nas traseiras da casa que agora é só pedra queimada. Era ali que estava a cozinha, todos os electrodomésticos, móveis e o enxoval da mulher, os brinquedos da filha e do primo desta que vive nos Estados Unidos, louça antiga, herdada por Salete. Era lá que estava quase toda a vida da família, que quase só usava a casa, que se salvou, para dormir. A verdadeira casa era ali, naquele anexo.

Paulo Vicente diz que seis famílias perderam as suas habitações por causa do fogo de domingo. Uma delas foi a de um primo do presidente da Junta de Freguesia de Vieira de Leiria, Joaquim Vidal, que, de olhos marejados, ainda nem consegue falar bem do que passou. Ardeu uma oficina, um campo de jogos, e no parque de campismo Manuel Caseiro e a mulher, Isabel, ficam contentes por só ter ardido o toldo dianteiro da estrutura onde passam todos os fins-de-semana. Junto deles, estão roulottes e tendas completamente destruídas de pessoas que conhecem bem.

Isabel conta como partiram antes do fogo e como regressaram ao receber um telefonema que lhes dizia que o parque de campismo “estava todo destruído”. “Cruzaámo-nos com pessoas a pé, com chamas de um lado e do outro, que vinham para aqui”, diz. Conhecia-os, parou, deu boleia a quem tinha sido operado a um olho, a quem já não podia andar por causa de uma anca fraca, a quem já não podia mais. “Dei o meu lugar e fiquei a pé. O meu marido trouxe-os ao parque de campismo e, quando me quis ir buscar, a GNR não o queria deixar passar. Mas ele dizia que tinha a mulher no fogo, que tinha que ir buscá-la, e lá o deixaram ir...”, diz.

Também foi a GNR que bateu à porta de Ana Cláudia Filipa, na Praia da Vieira, dizendo que era preciso partir. “Queria ir para a praia, mas disseram que não, que tinha que ir para o Pedrógão", conta. E ela foi, com a filha de dez anos, enquanto o marido ficava a proteger a casa. O irmão, médico no Hospital de S. João, tinha ido visitar os pais e já não regressou ao Porto. Ficou a noite toda a ajudar na triagem e a dar apoio a quem aparecia, primeiro nos bombeiros, depois no estádio do Vieirense e, depois, perante a ameaça das chamas, em Souto da Carpalhosa. “Durante a noite foram aparecendo vários voluntários que levavam comida e bebida, e pessoas das farmácias e de lares de idosos com medicamentos”, conta.

Regressou terça-feira ao Porto, passando pela paisagem queimada do famoso pinhal nacional. Ao olhá-lo assim, a fumegar, parece impossível que tudo aquilo volte a ser verde. Como é que se recupera disto? Joaquim Sandes Silva, especialista em Ecologia do Fogo, da Escola Superior Agrária de Coimbra, diz que a regeneração dependerá de vários factores. “Os pinheiros mais velhos, que já produziram pinhas, à partida permitirão a germinação de novos pinheiros, por regeneração natural. Os mais novos é mais difícil”, diz. É preciso esperar, ver que árvores irão sobreviver, apesar de feridas, e quais é preciso cortar e replantar. Joaquim Vidal sente a perda do pinhal com uma emoção que ainda não consegue gerir. “O Inferno não deve ser assim”, diz.

Sugerir correcção
Comentar