Desta vez não me contaram. Eu vi. Eu vivi

Ao fim do dia, convocado de urgência, parto sobressaltado rumo a Tourais. Pelo caminho cruzamos incêndios que nos ameaçam e destroem avassaladoramente. Terras, casas e matas. Tudo. Na A1. Na A25. Nas estradas nacionais que soubemos evitar.

Conseguimos chegar a Tourais. Não há acolhimento possível. Apetece chorar, mas não há tempo (nem é o tempo). Chovem fagulhas desembestadas pelo vento. Olho à volta e sinto o desespero e a impotência dos que já cá estavam. O cerco do fogo, a luz cortada, as mangueiras secas, tudo se conjuga num perfeito holocausto.

Não sabemos o que fazer. Sem água e sem ajuda, decidimos fechar a casa. Imaginamos que se isolarmos cada divisão da casa, talvez se consiga dificultar o contágio. É vã a nossa esperança, porque o fogo vem do céu. Pelas ruas o horror é completo. Começam a arder copiosamente casas no meio da povoação. Mesmo no centro ardem duas casas formando um céu impressionante de chamas poderosas.

Não há coordenação. Não há comunicações. Estamos entregues.

Desesperado (não consigo evitar repetir a palavra) tento substituir a protecção que o Estado não nos dá. Vou a casas, chamo as pessoas que humana mas irracionalmente não querem abandonar a sua "vida". Uns convencemos, outros não. Faço várias vezes o percurso Tourais-Vila Nova de Tazem, onde fica o único quartel dos bombeiros ao qual conseguimos chegar sem estradas cortadas. Os bombeiros não sabem de nada em concreto. Não sabem para onde e se devem ir. Não sabem sequer se há pessoas a evacuar. Digo-lhes que sim. Mas o que é mais necessário é um autotanque que possa acudir ao inferno cada vez mais indomável. Se ardem já 4 casas, com o vento, a chuva de fagulhas e a ausência de água e de ajuda, teremos (viveremos) o fim do mundo. No íntimo, lavado em lágrimas, cheguei a despedir-me da nossa casa. Numa das investidas desesperadas (desespero sempre) vou para o entroncamento da estrada onde estão dois militares da GNR - tão perdidos como qualquer um de nós - a cortar o último acesso a Tourais. Fico com eles, descrevo-lhes o horror de onde venho e insisto que precisamos de ajuda. Do Céu (com "C" maiúsculo) de repente avisto as sirenes dos bombeiros vindos de Vila Nova de Tazem. Era um autotanque! Salto para o meio da estrada para os "obrigar" a acudir Tourais. Virem, virem aqui! Passava das duas da manhã, era o primeiro sinal de ajuda depois de não sei quantas horas abandonados à nossa sorte e à sofreguidão imprevisível das chamas. A desgraça não foi maior graças àquela ajuda! Dentro do possível, passou a ser combatido o fogo dentro da povoação. As casas a arder, arderam na mesma. E três mais, ainda, que de tão próximas não foi possível evitar. Mas não se alastrou a toda a povoação.

Os ventos loucos e imprevisíveis começaram a ajudar também. Eram loucos e imprevisíveis, mas estavam a devolver as fagulhas aos focos de origem, onde já nada mais havia a arder. Os bombeiros perceberam que tinham de recolher as pessoas, o que também começou a correr ordeiramente. Pouco depois voltou a luz elétrica. E com a luz tivemos a água do poço que até então o motor não conseguia trazer. Dentro do caos e do desespero começámos a sentir-nos úteis e consequentes. Subíamos aos telhados, circulávamos à volta da casa e do largo à porta da cozinha. E tudo molhávamos. Não parámos. Ninguém parou.

Às 5 da manhã (mais coisa menos coisa) consegui dar uma volta à aldeia. De tão loucamente concentrado na nossa casa perdera a visão do conjunto. Cada um à sua maneira havia resistido. Inexplicavelmente, as casas haviam passado quase todas incólumes. Mesmo aquelas no meio de terrenos completamente negros de consumidos.

Já de manhã fui ver a Helena e o Fernando, e o Tonito e a Junta. Guardo os olhos embargados, os rostos extenuados, mas a resistência e presença que sabia que não lhes faltava. E a dor porque a Aurora e o Matos não conseguiram salvar as suas casas.

Foi o horror. A impotência. A sensação de abandono. O desgosto da perda iminente. O desespero. Muito desespero. Mas afortunadamente sou dos que posso dizer que sobrevivemos. Nós e a nossa casa.

Desta vez não me contaram. Eu vi. Eu vivi.

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