A Catalunha declarou a independência? Talvez sim, talvez não

Carles Puigdemont arrisca-se a ser lembrado como o político que meteu a Catalunha numa zona de indefinição, sem saber o que fazer a seguir.

1. No passado, as declarações de independência costumavam ser claras e inequívocas: declarava-se a independência, ou não se declarava. Sabia-se bem o que isso significava — normalmente guerra —, para quem a declarava unilateralmente e para o Estado que sofria a perda no seu território e população. Mas esse mundo de certezas binárias e a “preto e branco” está em rápida transformação. Hoje existe um leque mais variado, e sofisticado, de respostas a essa questão. Afinal, vivemos num mundo pós-moderno, cheio de narrativas e subjectividades. O que para uns foi uma declaração de independência, para outros pode não ter sido. Este parece ser o mundo do Presidente da Generalitat, Carles Puigdemont, inspirado no precedente da Eslovénia.

2. No final da Guerra-Fria, a Eslovénia inaugurou um novo paradigma em matéria de declarações de independência unilateral. Fez uma declaração de "independência suspensa", logo após realizar, em finais de 1990, um referendo não permitido pela constituição da Jugoslávia, Estado do qual fazia parte. A estratégia foi ficar à espera de um timing favorável para o reconhecimento internacional. Nem a União Europeia, nem os EUA, pretendiam fazê-lo. Mas o desencadear do conflito armado, em 1991, ajudou a Eslovénia a vitimizar-se e a ter simpatia internacional. A Alemanha, recém-reunificada, fez o resto: deu um bom empurrão na desagregação da Jugoslávia ao reconhecer a independência da Eslovénia (e da Croácia). A intenção dos alemães, cínica ou ingénua, terá sido contribuir para a paz. As guerras na Jugoslávia duraram até 1999.

3. Na Catalunha, o exemplo da Eslovénia tem despertado grande interesse. Mas a Catalunha parece empenhada não tanto em imitá-lo como em adaptá-lo ao seu caso. Pretendeu dar-lhe outro grau sofisticação e de nuances. A declaração de independência unilateral da Eslovénia foi demasiado clara e objectiva na sua intenção. O mesmo se pode dizer da suspensão dos efeitos durante seis meses. Também o referendo na Eslovénia, apesar de inconstitucional, mostrou um apoio político claro da esmagadora maioria da população — votaram mais de 88% dos eleitores e quase 95% a favor da independência. A consequência foi muito clássica: guerra (ainda que de duração limitada e sem consequências comparáveis ao resto das guerras da Jugoslávia). Nada disto se adequa à Catalunha actual, nem à política pós-moderna da União Europeia.

4. O referendo de 1 de Outubro foi um momento alto para os independentistas da Catalunha. A violenta intervenção policial, ordenada pelo governo Mariano Rajoy, deu-lhe tonalidades dramáticas. Permitiu granjear simpatia internacional. Aproveitando um timing favorável ao interesse da Catalunha, Carles Puigdemont devia ter convocado eleições. Credibilizaria a reivindicação democrática independentista. Não o fez. Motivo não confessado: as sondagens conhecidas não são favoráveis ao seu partido. Avançou para a independência unilateral invocando os resultados de um referendo que teve mais de 90% de votos a favor. Só que apenas participaram 43% dos eleitores e em circunstâncias que tornam impossível validá-lo imparcialmente. Os partidos que o apoiam têm uma escassa maioria parlamentar e representam menos de 50% dos eleitores. Aparentemente, os líderes independentistas imaginavam possível uma independência low-cost: com as empresas a não fugir, com a União Europeia e mediar o conflito e com a comunidade internacional a dar sinais de reconhecer o novo Estado. Tiveram um choque de realidade.

5. No passado dia 10 de Outubro, os partidários da velha escola independentista — que inclui os nacionalistas da extrema-esquerda da CUP, os quais pressionam para uma independência de qualquer maneira, e os nacionalistas da direita espanhola, que pressionam para usar o art.º 155 da Constituição e suspender a autonomia à força —, ficaram ambos frustrados. Não compreenderam a subtileza retórica das declarações de Carles Puigdemont no parlamento da Catalunha. Nem o governo espanhol. Pediu logo uma aclaração, ameaçando, sem muitas subtilezas, com o art.º 155. Em resposta, Carles Puigdemont veio dizer que prefere falar antes sobre o “problema colocado pela maioria do povo catalão que quer empreender o seu caminho independente no âmbito europeu”; acrescentou ainda “que a suspensão do mandato político surgido nas urnas a 1 de Outubro mostra a nossa firme vontade de encontrar a solução e não o enfrentamento”. Muito bem, quanto ao diálogo. É louvável. Mas em que ficamos? Houve declaração de independência, ou não houve? Talvez sim, talvez não.

6. Num guião cinematográfico não estaria mal: um final ambíguo mas feliz, após o clímax do referendo de 1 de Outubro. Todos poderiam reclamar vitória: Oriol Junqueras, Ada Colau, Artur Mas e outros, que, sob o “manto diáfano” da independência disputam o poder entre si. O mesmo poderiam fazer Mariano Rajoy, Pedro Sánchez, Albert Rivera e Pablo Iglesias na “guerra dos tronos” da política espanhola. Mas, no mundo real da política e dos interesses, as coisas não se resolvem de maneira tão simples. Com tantas pressões contraditórias, Carles Puigdemont percebeu o grave problema de não ter optado por eleições, deixando a decisão para um novo parlamento representativo de uma vontade clara da maioria dos eleitores. Algo que, até agora, nunca existiu. Arrisca-se a ser lembrado como o político que meteu a Catalunha numa zona de indefinição, sem saber o que fazer a seguir. Solução para sobreviver politicamente: ganhar tempo com declarações ambíguas e esperar que Mariano Rajoy — e a perseguição judicial aos líderes independentistas —, o possam ajudar. O uso “à bruta” do art.º 155, instalando o sentimento de uma injusta e opressiva actuação governamental, pode resgatar o independentismo minoritário do fracasso do seu projecto.

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