As chamas chegaram e "não houve tempo para nada"

Entre Coimbra e Viseu, o fogo varreu o terreno e deixou um rasto de destruição.

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As chamas chegaram à aldeia de São Joaninho pelas 23h de domingo SÉRGIO AZENHA

A casa de Inocência Rodrigues é das primeiras da aldeia de São Joaninho, quem vem por Santa Comba Dão. As chamas chegaram ali por volta das 23h de domingo. Depois “foi toda a noite”, conta a vizinha Natália Varela. Dois homens que estavam a tentar ajudar o irmão de um deles a salvar um aviário morreram. Ao todo, no concelho morreram cinco. Aos dois homens junta-se uma vítima em São Jorge e um casal de idosos na aldeia de Relvas.

Para Inocência, de 64 anos, o termo de comparação é Pedrógão. “Foi uma tragédia. Não me lembro de uma coisa destas”. Diz que o furo no solo que tinha para tentar apagar as chamas secou. “Foi tão de repente... Não houve tempo para nada”, acrescenta Natália, cujo marido foi hospitalizado.

Ainda conseguiu salvar a casa, mas o estores, tal como os de muitas moradias na zona, derreteram com o calor. Os animais que tinha também morreram. “Não quero mais animais.”

Entre São Joaninho e Relvas, está a aldeia de Chancela. Ali, várias casas foram reduzidas a cinzas. “Isto foi um furacão de lume, um tornado de fagulhas em volta da casa”, descreve Joaquim Braz, de 49 anos. De cabelos suados e olhos vermelhos, faz o rescaldo num dos terrenos que ardeu ao lado da sua casa. Já é final de tarde de segunda-feira e ainda não foi à cama.

“A certa altura tive que ir para dentro. Era tanta lenha, tanto barulho”, diz, enquanto desenha no ar um remoinho com os braços.

A casa acabou por não arder, apesar de as chamas terem chegado a um metro das botijas de gás e do depósito de gasóleo. Já outra moradia que tem na aldeia, que era para ser habitada pela filha e pelo namorado, foi destruída. Por volta das 7h, o pior passou.

Sobre o casal que morreu na aldeia de Relvas, fonte da GNR refere que os idosos residiam em Setúbal, mas tinham ali casa. Pelas 2h da madrugada de segunda-feira saíram de carro, presumivelmente para escapar às chamas que rodeavam várias casas. O veículo em que seguiam entrou em despiste e foi apanhado pelo fogo. 

Na viagem entre vários concelhos, como Penacova, Tábua, Oliveira do Hospital ou Santa Comba rareiam as manchas verdes e a cortina de fumo limita a visibilidade. Várias localidades nestes municípios estiveram sem comunicações, energia e água ao longo do dia desta segunda-feira.

Em Oliveira do Hospital, o presidente da câmara apontava para oito vítimas mortais, enquanto a Protecção Civil falava em cinco. Uma das vítimas era vizinha de António Fonseca, que mora na sede de concelho. Foi apanhada pelas chamas enquanto conduzia com a filha e o marido no carro. A estrada que liga Oliveira do Hospital à aldeia de Pinheiro dos Abraços está agora desimpedida, mas na berma estão vários carros incinerados. António Fonseca conta que não se conseguia ver a um metro de distância.

Em Pinheiro dos Abraços, a oficina de pintura de automóveis de Carlos Martins ardeu, mas a casa foi poupada. Foi obrigado a abandonar a habitação pela GNR. Só voltou de manhã para encontrar as carcaças dos carros. 

As chamas chegaram a Vale Maior, uma aldeia dos arredores de Penacova, distrito de Coimbra, entre as 17h e as 18h de domingo. “Aquilo foi rápido”, resume uma moradora que prefere não dar o nome. Foi ali, num armazém numa das fronteiras entre a aldeia e a floresta, que morreram duas pessoas, duas das primeiras vítimas mortais confirmadas pela Protecção Civil na contagem que chegaria aos 36 mortos.

Amélia Silva explica que os dois homens, irmãos, estavam a tentar “salvar as coisas deles” e que estavam a ajudar o pai a colocar bens a salvo. “Quando [o incêndio]começou não havia água” para enfrentar o que descreve como “um mar de fogo e um autêntico inferno”. “As chamas passavam por cima das casas.” Amélia diz que veio a “rastejar” para escapar às chamas e conseguir respirar. “Vi-os quando estávamos com as mangueiras esticadas, mas depois aquilo foi tão de repente que cada um fugiu para seu lado”, recorda.

“Não havia bombeiros”

Outro morador, que não quis ser identificado e vive nas imediações do local, conta que ainda “se tentou ir lá, mas não havia bombeiros”. Além de lenha, o terreno inclinado onde está o armazém teria colmeias, mel e cera. As duas vítimas estariam no armazém e, quando tentaram sair, as chamas cortaram o caminho, onde agora se observam chapas retorcidas, madeira carbonizada e mel caramelizado. No local, o que resta indicia a violência das chamas: além do telhado de metal que foi projectado, as paredes de tijolo do armazém racharam com as altas temperaturas.

“O que você está a ver aconteceu em 2010”, diz o morador enquanto aponta para as encostas negras que rodeiam a aldeia. Mas o incêndio de então não causou vítimas.

Na estrada principal que atravessa Vale Maior, um grupo de moradores junta-se para falar sobre tudo o que se perdeu na noite que passou. Mas o “inferno”, como todos lhe chamam, não andou só por ali. As aldeias que se encontram no seguimento do caminho também são assunto.

Pelo meio da estrada encontram-se cabos, postes, árvores e ramos queimados, elementos que vão contribuindo para uma paisagem desoladora. Chegados a Vale do Conde, logo a seguir a Vale Maior, encontra-se casas, carros e máquinas agrícolas destruídos. Quando o fogo chegou à aldeia, conta Natália Marcelo, de 80 anos, as fagulhas provocaram vários focos de incêndio. Era uma “nuvem que vinha e trazia lume”. 

O incêndio que fez duas vítimas em Penacova começou no sábado na Lousã e alastrou-se depois a Vila Nova de Poiares. Além de cultivos, ferramentas e máquinas agrícolas, gado e viaturas, em Vale do Conde, de primeira habitação, só ardeu parte da casa do filho de Natália. O resto eram casas que não estavam ocupadas. Mas a octagenária ainda não consegue fazer um balanço do que perdeu. 

Emocionada, Natália Marcelo ajeita a máscara respiratória. “Estamos cá. Mas olhe que é duro.”

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