Culpas antes, durante e depois: mais um tiro na Protecção Civil

Relatório diz que há diferenças nas fitas do tempo onde se registou o que aconteceu em Pedrógão. Xavier Viegas diz que "Pedrógão pode não ser caso isolado".

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Incêndio terá começado com um cabo que passa no meio da copa de uma árvore Nelson Garrido

Foi logo no início da tragédia que o Governo pediu a Xavier Viegas, especialista em fogos florestais, que investigasse no terreno o que se tinha passado. Três meses depois, o professor da Universidade de Coimbra entregou o relatório ao Ministério da Administração Interna (MAI) - e este só traz más notícias para a ministra Constança Urbano de Sousa: a Protecção Civil falhou em larga escala e essas falhas podem ter custado vidas.

Nas mais de duzentas páginas do relatório, Xavier Viegas fala da "autêntica tempestade de fogo" que percorreu a área tornando o "combate directo ao incêndio" a partir de determinada hora como "impraticável e perigoso", e diz que pode voltar a repetir-se. "Pedrógão pode não ser caso isolado", disse ao PÚBLICO. E a repetição pode acontecer, tal como defendeu o relatório da semana passada dos técnicos independentes, porque houve problemas estruturais inerentes à Autoridade Nacional de Protecção Civil (ANPC) que contribuíram para o que aconteceu.

Um desses problemas começou com o combate inicial. "Foi desde logo reconhecido o seu potencial para se vir a tornar um grande incêndio, mas os meios disponíveis e o seu comandamento não se mostraram suficientes para controlar o incêndio”, anota o perito que acrescenta que a "falta de percepção da sua importância, nos vários escalões de decisão [do comando], levou a que não fossem utilizados mais recursos, nomeadamente mais meios aéreos pesados, no seu combate”. E, assim, “a reação ao agravamento da situação foi claramente tardia”. De notar que durante duas horas iniciais, entre as 16h e as 18h, não houve actuação de meios aéreos.

O perito chega à conclusão que várias circunstâncias poderiam ter evitado ou pelo menos minorado a tragédia. Um desses casos foi a descoordenação no socorro, sobretudo a partir das 22 horas, quando se soube o número de vítimas - e também a hora a que Albino Tavares, actual comandante nacional tomou o comando das operações - "a coordenação foi claramente afectada". "Não foi prejudicado apenas o combate, como também o socorro às vítimas feridas. Estamos convencidos de que se poderiam ter evitado algumas mortes e muito sofrimento aos feridos, se este socorro tivesse sido mais pronto e melhor organizado", conclui.

Este é mais um relatório que arrasa a operação da ANPC, mas vai mais longe lembrando as nomeações para este cargo que foram feitas em cima da época de incêndios. "Parece-nos também que o processo de nomeação dos CODIS [comandantes distritais], foi concluído demasiado tarde", escreveu, fazendo uma apreciação sobre as competências para este cargo. "A função de comando no sistema nacional ou distrital da ANPC requer qualificações e experiência que não são fáceis de adquirir em pouco tempo", lê-se. Aliás, no relatório, é referida a inexperiência em operações desta natureza dos dois comandantes que estiveram à frente das operações nas primeiras horas. 

Os relatórios dos independentes apresentado revelava uma interrrupção da fita do tempo dos acontecimentos decidida pelo então segundo comandante nacional. Agora, Xavier Viegas revela que entre uma versão em papel e uma versão digital da fita do tempo, havia "diferenças significativas entre os dois registos". Questionada a ANPC, não houve explicações, anota o especialista.

Outra das falhas da ANPC anotadas neste relatório prende-se com o facto de a Protecção Civil não seguir os avisos do Instituto Português do Mar e da Atmosfera.

O estudo não deixa de fora os problemas com o SIRESP. Quando a maior parte das mortes aconteceu, foi quando "a dificuldade com as comunicações" tornou ainda mais complicado um comando eficaz. O SIRESP "teve uma falha geral em toda a região, por limitações inerentes aos sistemas, por sobrecarga de utilizadores, ou ainda por deficiente utilização de alguns dos sistemas". Essa falha do sistema de comunicações "terá contribuído para a falta de coordenação dos serviços de combate e de socorro, para a dificuldade de pedido de socorro por parte das populações e para o agravamento das consequências do incêndio".

No documento, é contrariada a tese da PJ de que o início do fogo terá sido um por causa de um raio numa árvore. De acordo com o perito, o foco de incêndio foi afinal provocado por um cabo de electricidade da EDP que passa no meio de copas de árvores. A EDP já reagiu, mostrando-se surpreendida e contestando as conclusões do relatório.

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