Monstruosidades vulgares

Quando olho o monstro que vai crescendo à frente da minha janela no Funchal vejo nele uma metáfora das monstruosidades vulgares em que nos deixámos enredar.

Da janela da minha casa no Funchal vejo o monstro a crescer: os quase vinte andares do futuro hotel Savoy, uma imensa muralha de betão debruçada sobre a baía e rematando o massacre da paisagem por outros atentados urbanísticos, quase sempre em nome do progresso. Foi aliás em nome das oportunidades de emprego que a maioria de esquerda da Câmara do Funchal (reeleita no passado dia 1) acabou por dar luz verde a este projecto herdado do executivo anterior – liderado pelo actual presidente do Governo Regional, Miguel Albuquerque – que ameaça converter esta bela cidade atlântica num cenário de horror futurista à Blade Runner.

A monstruosa aberração foi aprovada e abençoada pelo PSD e pela coligação do PS com o Bloco e outros mini-partidos como uma fatalidade para bem dos madeirenses. Podia ser, só por si, uma metáfora de outras monstruosidades que vemos pelo país fora e se tornaram emblemas do regime. Mas a metáfora ultrapassa o âmbito urbanístico.

A remodelação do Governo madeirense, ocorrida esta semana, foi naturalmente eclipsada pela acusação a Sócrates e o novo Orçamento do Estado. Mas o seu significado político presta-se a leituras para além do espaço insular ou das particularidades do jardinismo e pós-jardinismo. É que Pedro Calado, o novo homem forte do Governo, vice-presidente e verdadeira sombra de Albuquerque era, nos últimos tempos, um dos principais administradores da AFA – o mais poderoso grupo de construção civil da Madeira desde o lançamento das vias rápidas ou outras obras faraónicas do regime jardinista e (já adivinharam?) proprietário do tal monstro que assombra o Funchal.

Pedro Calado é um velho cúmplice de Albuquerque e fora seu número dois na Câmara do Funchal, pelo que não seria de estranhar este regresso à cena política no momento em que o Presidente do Governo se encontra fragilizado e é alvo de contestação no PSD local. Mas o que não seria de estranhar é precisamente o que causa estranheza como se fosse o mais natural do mundo: o trânsito absolutamente pacífico entre os grandes negócios – neste caso, o maior à escala regional – e os cargos de maior responsabilidade política (Calado acumula as Finanças, a Economia, os Transportes e até a ‘Coordenação Política’ no Governo de Albuquerque).

A passagem directa de antigos ministros ou até líderes partidários para a administração de grandes empresas – da Banca à Construção Civil – foi-se banalizando num país onde prolifera há muito a promiscuidade entre interesses públicos e privados, com desprezo soberano por uma ética das incompatibilidades. Quando abrimos a boca de espanto com as revelações do caso Sócrates deveríamos antes pensar que as origens da questão se encontram enraizadas profundamente no nosso regime democrático, beneficiando da complacência e da cegueira deliberada que se foram instalando perante comportamentos eticamente intoleráveis. E assim chegamos ao sentimento de impunidade que explica as teias – e tentações suicidárias – estabelecidas entre um primeiro-ministro, o maior banqueiro do país, empresários, gestores e outros actores circunstanciais. Como não pudemos ver o que estava tão ostensivamente ao alcance dos nossos olhos na trajectória de um homem devorado pelo deslumbramento do poder (e do seu estatuto)? O mistério Sócrates é um falso mistério.

Por isso, quando olho o monstro que vai crescendo à frente da minha janela no Funchal vejo nele uma metáfora das monstruosidades vulgares em que nos deixámos enredar.

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