É com o cérebro que comemos

Um prato redondo e vermelho faz com que a comida pareça mais doce? Estamos dispostos a pagar mais por uma refeição se os talheres forem pesados? Charles Spence, investigador em Oxford, trabalha há muito para provar que a experiência de comer começa antes do momento em que a comida nos chega à boca.

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Imaginemos que estamos, cheios de apetite, em frente a um prato de comida. Bacalhau à Brás, por exemplo. Quem o cozinhou esforçou-se para o fazer o mais delicioso possível. Saberemos se conseguiu quando colocarmos a primeira garfada na boca. Ou não?

Charles Spence, professor de Psicologia Experimental na Universidade de Oxford, onde é responsável pelo Crossmodal Research Lab, autor do livro Gastrophysics — e um dos oradores da conferência internacional Experiencing Food: Designing Dialogues, que se realiza em Lisboa entre 19 e 21 de Outubro — trabalha há muito para provar que a experiência de comer começa antes do momento em que a comida nos chega à boca.

“Raramente pomos alguma coisa nas nossas bocas sem antes saber algo sobre o que é, para podermos imaginar o gosto que tem”, explica ao P2 numa entrevista por telefone a partir de Inglaterra. O que as experiências realizadas por Spence têm demonstrado é que o palato não é, neste processo, o sentido central.

“A informação vem, em primeiro lugar, daquilo que vemos. Geralmente, ainda antes de lhe tocarmos, podemos cheirá-lo, depois vem o som, e por fim o sabor e o cheiro retronasal, que acontece quando engolimos”, prossegue Spence. “Esta é a sequência. Os primeiros sentidos têm alguma vantagem em relação aos outros porque são eles que vão estabelecer as expectativas relativamente ao que vem a seguir. Daí que a visão tenha um papel muito importante.”

Olhemos, então, para o bacalhau à Brás. Sabemos a que sabe, já o comemos muitas vezes antes, mas um olhar é suficiente para avaliar, por exemplo, se está húmido e acabado de fazer, se é da véspera e já está seco. Todas estas informações são transmitidas ao nosso cérebro e a experiência de comer já começou. A expectativa está instalada.

Um dos pontos essenciais do livro Gastrophysics é precisamente esta “transferência da importância do palato, ou da boca, para a mente da pessoa que está a fazer a prova”. É na mente que todos os sentidos se juntam. Por isso, sublinha Spence, “é aí que reside a chave da prova e não na língua, onde habitualmente localizamos a experiência do sabor”.

Mas imaginemos agora que, ao lado do bacalhau à Brás, há um prato de aletria e que, connosco está um estrangeiro que não conhece nem um nem o outro. Sem que a visão lhe dê a mesma informação que nos dá a nós, que já conhecemos o sabor de ambos os pratos, até que ponto a experiência dele vai ser diferente da nossa? Os dois pratos são bastante parecidos, na forma e na cor, embora um seja salgado e outro doce e tenham sabores muito diferentes.

Spence defende, contudo, que o estrangeiro tem uma base. “Qualquer comida para a qual olhemos”, diz, “tem sempre uma cor, uma aparência, pode ser transparente, líquida, um gel, pode ser cremosa, pode ter uma apresentação cuidada ou ter sido colocada no prato sem qualquer preocupação.” Tudo isto é já informação para o cérebro. “Mesmo que nunca a tenhamos provado antes, ela terá sempre características semelhantes às de outras coisas que já comemos.”

Por isso, mesmo o estrangeiro que nunca viu aletria ou bacalhau à Brás pode aplicar regras mais ou menos universais. “Se a comida for castanha ou negra, provavelmente será amarga, se for rosa ou vermelha, será doce (nem sempre, mas provavelmente), se for verde ou amarela, será ácida, branca ou azul, mais salgada.”

Estas regras não funcionam em todas as ocasiões, mas podem dar-nos pistas. Uma das coisas com que os chefs da cozinha modernista, com os quais Charles Spence tem trabalhado (sobretudo, com Heston Blumenthal), mais gostam de brincar é com o baralhar destas expectativas. “É muito interessante quando elas se revelam erradas: pensei que seria doce, mas é amargo; pensei que ia saber a morangos, mas sabe a marisco.”

A reacção de surpresa que este desencontro entre a nossa expectativa e o sabor real provoca é geralmente desagradável, a não ser que estejamos precisamente num restaurante que já sabemos que nos irá surpreender e, como tal, preparados para isso. De resto, como consumidores, tendemos a ser profundamente conservadores.

Formas, cores & sabores

Um dos exemplos clássicos que Spence gosta de citar é o das barras de chocolate Dairy Milk, da Cadbury. Em 2013, os fabricantes decidiram alterar a forma da barra, tornando as pontas mais arredondadas. Foi o suficiente para que os consumidores se queixassem, dizendo que a fórmula tinha sido modificada e que o chocolate estava mais doce.

Este caso reforça um dos pontos defendidos pelo investigador: a comida que é servida em formas redondas é geralmente considerada mais doce. E, diz, mesmo o desenho no topo de um cappuccino pode influenciar a nossa percepção do sabor — se for uma estrela, a bebida parece mais amarga do que se for um coração.

Ao mesmo tempo, segundo os estudos de Spence — preciosos para quem lida com o marketing de produtos alimentares — uma mousse de morango parece 10% mais doce se for servida num recipiente branco do que se for apresentada num preto. Igualmente importante é o factor peso. Se uma embalagem de iogurte for de um plástico mais pesado, o iogurte vai parecer mais consistente e a pessoa vai sentir-se mais cheia do que se comer exactamente o mesmo a partir de uma embalagem mais leve.

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Nascemos a gostar apenas do doce e do umami. E a não gostar do amargo e do ácido. Tudo o resto é adquirido a partir da experiência, cimentada pela memória de episódios anteriores

A questão do peso é relevante também num restaurante de fine dining. Spence concluiu que se os talheres forem mais pesados as pessoas estão dispostas a pagar uma conta mais elevada do que se os talheres, mesmo que de qualidade, forem mais leves — possivelmente associam a leveza ao plástico e, portanto, a um produto não nobre, e o peso a metais nobres.

Quando se fala de cor na comida, um dos temas mais discutidos é o da presença, ou ausência, do azul. Basta colocar na Internet duas palavras — “blue food” — para entrarmos no debate sobre se existe na natureza algum alimento naturalmente azul. Uma das explicações dadas para o facto de nós tendermos a não querer comer alimentos azuis tem que ver com o instinto de sobrevivência — o azul indicaria um alimento que já estaria estragado e que, por isso, seria de evitar.

Há, contudo, duas ou três coisas azuis, como os mirtilos, as amoras ou as (raras) lagostas azuis. E há experiências como as que foram feitas recentemente com um vinho azul. “Os especialistas em marketing sempre disseram, desde as décadas de 1960 e 70, que o azul nunca funcionaria em comida”, diz Spence. “Mas hoje vemos que funciona em algumas coisas, por exemplo nas bebidas para adolescentes e ligadas ao desporto.”  

Quanto ao vinho azul, acredita que se vai destacar nas prateleiras dos supermercados e que as pessoas poderão comprá-lo pelo menos uma vez para servir numa festa. Mas, acrescenta, “quando se vê uma bebida azul num copo, essa cor já está tomada por bebidas de amora ou mirtilo, pelo que, a menos que a experiência seja cuidadosamente gerida, a pessoa não vai encontrar no vinho o que espera de uma bebida azul e o mais natural é que não goste”. Até porque “o vinho está no espectro dos produtos naturais e os consumidores tendem a achar que essa cor não é natural”.

Mas se no que diz respeito a bebidas ainda temos alguma margem para aceitar que possam ser azuis, quando se trata de comida é mais difícil (embora existam, por exemplo, batatas roxas). O mais complicado é quando a cor azul aparece em peixe ou carne. “Há um exemplo clássico, dos anos 70, de uma experiência de um jantar em que foram servidos bifes. A meio da refeição, a luz, que estava muito baixa, foi aumentada para níveis normais e as pessoas viram que os bifes eram azuis. E houve quem corresse para a casa de banho queixando-se de má disposição.” 

Spence voltou a essa experiência mais recentemente, agora com peixe. “Servimos às pessoas um sushi azul e houve muita gente que não comeu. Isto passava-se num programa de televisão e, quando as câmaras se desligaram, pedimos para trazerem o resto do sushi, que não tinha sido usado e que não levara corante. Desapareceu tudo num minuto, o que provou que as pessoas estavam com fome.” Só que aparentemente não a suficiente para as levar a comer peixe azul.

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ilustração miguel feraso cabral

Cheiros & sons

Há também factores culturais que entram na percepção do que comemos. Um exemplo é o tipo de louça que se utiliza nas diferentes partes do mundo. “Temos feito pesquisas em que as pessoas recebem massa em diferentes pratos, tigelas de metal como as que usam na China, tigelas de vidro, pratos brancos. Na China, as pessoas estão dispostas a pagar mais dinheiro por massa servida numa tigela de metal, enquanto em Londres, se lhes apresentarem a mesma coisa, não pagam quase nada.”

A cor também pode ter significados diferentes: um europeu associa o vermelho a doce, enquanto um mexicano pode associá-lo a um sabor mais picante. E os cheiros? A nossa ideia de baunilha, por exemplo, é uma construção cultural, afirma Spence. “Por vezes, os cheiros das comidas dominam o gosto, é o que acontece com a baunilha, que tem um sabor amargo mas que tem um cheiro que associamos ao doce.”

Outras experiências que tem desenvolvido em Oxford têm que ver com a importância do som quando comemos. Uma das mais conhecidas é a que envolve as batatas fritas Pringles (que, não sendo verdadeiras batatas, têm a vantagem de ser todas exactamente iguais). Uma série de voluntários passou pelo Crossmodal Research Lab para experimentar diversas Pringles e dizer se pareciam todas iguais. Cada um tinha um par de auscultadores através dos quais a equipa alterava a percepção do som, tornando-o mais nítido ou mais abafado. No final, apesar de as batatas serem de facto iguais, as pessoas achavam que umas eram mais frescas e outras vinham de uma embalagem aberta há muito tempo — provando que o som (e não o paladar) tinha tido uma influência decisiva na forma como achavam mais ou menos estaladiça cada batata.

Alguns sons afectam em particular a nossa capacidade de percepcionar o doce. É o que, segundo Spence, acontece nos aviões, onde o som de fundo constante acaba por, muito frequentemente, nos levar a pedir sumo de tomate ou um Bloody Mary, por sentimos vontade de um sabor mais próximo do umami (palavra japonesa para “delicioso e apetitoso”) e menos do doce.

Spence tem vindo a trabalhar com chefs para organizar jantares que lhe permitam ir comprovando diferentes hipóteses. “A ideia é ver o que acontece se manipularmos um dos sentidos. Tirando um, tira-se parte da informação. Temos uma refeição em que as pessoas estão vendadas, outra em que não se podem usar as mãos e a comida anda como que a voar por cima da mesa, outra em que colocam tampões nos ouvidos. Todos ficam muito admirados com a diferença que é comer algo crocante com ou sem tampões nos ouvidos. Eles ajudam a aumentar o estaladiço, o que reforça a textura.”

Salada com sabor a Kandinsky cortesia Charles Spence
Prato Picasso apresentado num evento Kitchen Theory’s Gastrophysics em 2016 cortesia Charles Spence
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Salada com sabor a Kandinsky cortesia Charles Spence

Pratos com narrativas lá dentro

O foco dos estudos de Spence é o momento da experiência, é esse que ele analisa, mas o que se passa no nosso cérebro mal olhamos para um prato de comida é também profundamente marcado pela memória que temos dos sabores. “Nascemos a gostar apenas do doce e do umami”, explica. “E a não gostar do amargo e do ácido. Tudo o resto é adquirido a partir da experiência, cimentada pela memória de episódios anteriores. Há experiências que queremos voltar a ter. É por isso que vemos agora vários chefs a tentar desencadear memórias específicas, sensações, nostalgias, tentando fazer com que a comida nos saiba melhor.”

O problema, sublinha, é que muitas vezes essas refeições sofisticadas, longos menus de degustação, não nos ficam gravadas na memória. “Quando, algumas semanas depois, se pergunta às pessoas o que comeram e qual o prato de que gostaram mais, elas não se conseguem recordar. Podem dizer que foi a sopa, mas quando tentam descrever ingredientes e sabores, dizem tudo errado. O chef pensa ‘fico contente por ter gostado do prato mas construiu-o na sua cabeça’.”

O que nos fica na memória, em relação a qualquer acontecimento, não é a experiência que tivemos numa versão mais desvanecida — é uma recomposição dessa experiência. “Geralmente lembramo-nos do início, do final, do ponto alto, talvez do ponto baixo, mas tendemos a esquecer o resto que se passa nesses momentos.” Curiosamente, diz, “alguns estudos recentes parecem indicar que quem fotografa o que vai comer, mesmo que não volte a olhar para a foto, lembra-se melhor da refeição”.

Mais uma vez, tudo isto prova a ideia de Spence de que os factores externos influenciam muito a nossa experiência e são, frequentemente, mais importantes do que a própria comida por muito que o chef tenha investido nela. “Há algumas coisas que podemos fazer para gravar melhor essa experiência na memória e aí entramos na área do experience design.” Os menus muito longos beneficiam, em muitos casos, se houver uma história, uma linha narrativa que ajude a estabelecer uma continuidade entre os pratos.

Regresso ao futuro

Não é a primeira vez que se fazem este tipo de experiências. No início do século XX, os futuristas de Marinetti criaram até um manifesto da cozinha futurista e organizaram jantares em que muito se passava para além da comida. “É fantástico voltar a ler o que Marinetti escreveu e ver como muitas coisas continuam actuais, desde a utilização de sprays com cheiros até às paisagens sonoras para acompanhar um prato”, diz Spence, cujas pesquisas estão na origem de um prato de Heston Blumenthal que é acompanhado por auscultadores através dos quais se ouve o ruído das ondas na praia e os gritos das gaivotas.

E porque é que entre Marinetti e hoje houve uma interrupção neste tipo de investigação? Porque é que as experiências dos futuristas não tiveram continuidade na altura? “Havia um lado fascista e misógino neles e isso não ajudou. Mas acho que as ideias saíram de moda porque eles estavam a tentar agitar as águas e chocar as pessoas e a comida que faziam não era boa.” Hoje, prossegue o investigador, “a tecnologia permite-nos fazer coisas deliciosas e multissensoriais”.

“Temos chefs com duas estrelas Michelin a fazer alguma da melhor comida do mundo e que sabem que para que ela perdure na memória de quem a prova é preciso combiná-la com técnicas de estimulação sensorial.” E, garante, mesmo os chefs que possam achar tudo isto uma distracção do essencial, que é a qualidade do produto, não podem ignorar a importância do que está à volta de uma refeição. “Quando comemos, fazemo-lo sempre em algum sítio, num determinado ambiente, o prato tem um nome, comemos com talheres e tudo isso tem um impacto. Não importa o que façamos, ficção científica futurista ou slow food biológica, não podemos nunca excluir o contexto.”

E será que agora, ao contrário do que aconteceu com os futuristas, o tema veio para ficar? Charles Spence não tem dúvidas. “Há um milhão de coisas para explorar. Uma das razões por que me interessei por esta área é porque existem temas fundamentais que ninguém pensou em tratar até ao momento em que fizemos o nosso estudo sobre como os talheres podem alterar o gosto da comida. Há séculos que comemos com talheres e ninguém tinha pensado explicar isto.” Como resultado destes estudos, cada vez mais os designers estão a aproveitar estes conhecimentos para “criar pratos e talheres que nos ajudem a contar histórias sobre a comida”.

Só agora começámos este caminho, conclui Spence. “Não há nada que nos excite mais do que ver um prato com a nossa comida favorita quando temos fome. Nada, nem a pornografia, nem sequer o momento em que comemos. É a expectativa que nos excita. É algo que está gravado nos nossos cérebros e não vai desaparecer. E é isso que nos vai manter interessados.”

Este artigo encontra-se publicado no P2, caderno de domingo do PÚBLICO

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