“Agoraphobic Traveller”: Jacqui faz fotografia de viagem sem sair de casa

Contrariando os limites impostos pelo seu diagnóstico de agorafobia, a neozelandesa “encontrou um surpreendente e singular refúgio” nas potencialidades criativas do Google Street View

Retrato da neozelandesa Jacqui Kenny, também conhecida por Agoraphobic Traveller DR
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Retrato da neozelandesa Jacqui Kenny, também conhecida por Agoraphobic Traveller DR
Jacqui Kenny, Google Street View
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Jacqui Kenny, Google Street View

Já passaram 20 anos desde que Jacqui Kenny teve o primeiro ataque de pânico. “Nessa altura ninguém falava de ansiedade ou de ataques de pânico”, conta ao P3 a neozelandesa durante uma conversa telefónica. “Tive de lidar com isto sozinha durante muitos anos.” O diagnóstico, agorafobia, chegou em 2009, em Londres, cidade onde reside há 11 anos. “Hoje em dia, num dia mau, torna-se muito difícil percorrer os corredores de um supermercado. Olho continuamente para a saída. Preocupa-me não conseguir escapar rapidamente, se tiver um ataque de pânico repentino; preocupa-me passar por essa vergonha em frente a toda a gente.”

 

Tentar evitar os locais que considera mais propícios ao surgimento de um ataque faz com que Jacqui Kenny altere rotinas e recorra com frequência ao apoio de amigos, que tornam o seu mundo “num lugar menos ameaçador”. O seu maior medo é voar. “No ar, não existe uma saída; e estar a bordo de um avião significa que estou a afastar-me de casa, o que é incrivelmente difícil para mim.”

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Estados Unidos da América

 

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Quirguistão

Apesar de não gostar de se afastar do seu espaço de conforto, as paisagens dos Estados Unidos da América, do México, Peru, Chile, Senegal, África do Sul, Emirados Árabes Unidos, Quirguízia, Mongólia não são desconhecidas daquela que se autodenomina Agoraphobic Traveller, detentora da conta @streetview.portraits na rede social Instagram – onde é seguida por mais de 66 mil pessoas. Sem sair de casa, Jacqui viu o mundo; sem ter viajado, Jacqui Kenny chegou. Contrariando os limites impostos pelo seu diagnóstico, a neozelandesa “encontrou um surpreendente e singular refúgio” nas potencialidades criativas do Google Street View.

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México

 

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Emirados Árabes Unidos

Jacqui já perdeu a conta ao número de horas que dedicou ao projecto, desde o momento que o iniciou, em Março de 2015. Consiste em viajar virtualmente para qualquer parte do globo com recurso à ferramenta de navegação do Google e guardar imagens fotográficas nela exibidas com recurso à função de captura de ecrã. “Comecei a desenvolver o projecto porque estava a atravessar uma fase difícil”, explicou.

 

Uma súbita situação de desemprego e o medo de se expor a um novo ambiente laboral fizeram com que Jacqui procurasse um passatempo de cariz criativo. “O processo de viajar através do Google Street View tornou-se quase meditação”, explica. “Era entusiasmante perceber as potencialidades do Street View. Adoro o facto de a câmara estar num ponto tão alto: torna o ângulo das imagens muito interessante e invulgar. O facto de ser uma imagem de 360 graus torna as sombras algo estranhas, a acção fica arrastada, e a realidade parece algo desfasada e anómala. As caras estão sempre desfocadas e o congelamento da imagem é esquisito… Tudo parece fora do sítio. Esses elementos combinados fascinam-me.”

 

À medida que ia “visitando” mais lugares, começou a perceber que alguns sítios têm realmente algo de especial [vê a galeria]. Uma luz peculiar, cores bonitas, uma arquitectura extraordinária ou vestuário exótico. “Tudo isso está disponível no ambiente surrealista da captura [de ecrã] Google, o que é fabuloso. Quando olhava para as imagens, sabia que pareciam diferentes das fotografias que via normalmente e isso entusiasmava-me. Com o tempo, comecei a adorar visitar lugares que estão no meio do nada, lugares onde nenhum turista sonhou ir.”

 

Fotografia ou edição de fotografia?

Descobriu rapidamente que gosta de locais que registam temperaturas extremas. Zonas áridas. “A luz é incrível nesses lugares e a luz é importantíssima para mim. 99,999% das imagens do Google Street View têm uma luz desinteressante. Descobrir os locais onde há luz e cores incríveis pode ser um processo intensivo e extenuante”, explica Jacqui Kenny, que começou por procurar lugares mais próximos da linha do Equador. Visitou primeiro as cidades grandes, mas percebeu que seria difícil conseguir “um enquadramento 'limpo’ nesse tipo de contexto; havia demasiada coisa a acontecer, muitos objectos indesejados dentro do enquadramento”.

 

Foi então que tomou a decisão de se dirigir para cidades mais pequenas, vilas e aldeias. “Passei a fazê-lo sistematicamente, porque eu preciso (e preciso mesmo, é imperativo!) de muito espaço nas imagens. Permaneço na mesma povoação até encontrar algo que valha a pena ‘guardar’, quer demore minutos, horas ou dias. O processo é muito parecido com o da fotografia tradicional, com a procura da combinação geo-temporal ideal."

 

A diferença é que Jacqui não pode alterar o momento da captura. “As fotografias já foram feitas, não há nada que possa fazer. Às vezes encontro um plano mesmo bonito; olho mais atentamente e encontro um defeito. Pode ser a pose da pessoa, por exemplo. Se encontro duas ou mais pessoas num enquadramento, elas devem estar minimamente coordenadas. Ou vestem as mesmas cores ou fazem os mesmos movimentos…”

 

A fotografia sempre foi o meio de expressão favorito de Jacqui Kenny, apesar de raras vezes ter feito uso de uma câmara fotográfica. “Eu não sou fotógrafa”, explica. “Sou fotógrafa apenas no universo paralelo do Google Street View”, graceja. “Foi só quando comecei a desenvolver o projecto que me apercebi que existe um certo tipo de imagem que me atrai, um certo estilo que me interessa. Antes disso, eu não compreendia bem o conceito de edição de fotografia. Seleccionava imagens de que gostava e assumia que toda a gente iria gostar delas. Pensava que todos iríamos gostar do mesmo, que isso era o natural. Mas quando comecei a ter pessoas a observar-me a trabalhar e a dizer-me ‘Olha, esta é fantástica’, percebi que não era assim. ‘Aquela imagem é incrível!’, diziam. ‘Não, não é!’, respondia. Só então comecei a pensar que cada pessoa terá uma percepção diferente e que a minha visão é, de facto, muito pessoal. Na mesma vila, no Google Street View, provavelmente toda a gente escolheria uma imagem diferente da que eu escolhi.”

 

Jacqui Kenny já capturou mais de 27 mil imagens do Google Street View; dessas 27 mil seleccionou 236 para publicação na sua conta de Instagram. “Agora procuro reduzir este número para dez”, confessa. O objectivo é simples, mas inédito. “Agora, e por um período limitado de tempo, a Google autorizou-me a vender online uma série de impressões de edição limitada e a direccionar o lucro para uma instituição de solidariedade. Com a ajuda da Stories for Good, 10 libras de cada venda irão directamente para a Brain and Behavior Research Foundation, uma organização não governamental sem fins lucrativos que trabalha em prol da melhoria da compreensão, prevenção e tratamento de doenças de foro mental”, anuncia.

 

A sua primeira exposição individual decorreu neste mês de Outubro numa galeria em Manhattan, Nova Iorque. “Há pessoas interessadas em fazer um documentário comigo nos locais que registei. Eu adoraria visitá-los e fotografá-los pessoalmente; gostaria que essa fosse a próxima etapa do projecto.”

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