Oradour em Bruxelas

A Europa não desconhece a sua História trágica. Mas, por vezes, parece não ser capaz de detectar os sintomas do mesmo mal que, por duas vezes, a deixou em ruínas.

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1. Durante dez minutos, não mais, Robert Hébras, 93 anos, voz firme e passo ainda seguro, descreveu o extermínio da população de uma pequena vila francesa, cometido pela 2.ª Divisão SS “Das Reich”. Durou o tempo de uma tarde, no dia 10 de Junho de 1944. Morreram 642 pessoas, na sua maioria mulheres e crianças. Houve seis sobreviventes. Ele foi um deles. Em Bruxelas, na quarta-feira passada, limitou-se a descrever os factos. Alistou-se na Resistência. Vive numa vila junto às ruínas de Oradour-sur-Glane, que ficou na História como um dos piores crimes nazis cometidos em França. Durante anos, a memória do massacre ficou com ele e com a sua pequena vila. Quando, em 1983, foi a Berlim-Leste testemunhar contra um dos responsáveis de Oradour, Willy Brandt convidou-o a participar numa conferência internacional sobre a paz, em Nuremberga. Dedicou o resto da sua vida a lutar pela reconciliação entre a França, a Alemanha e a Áustria e a dar o seu testemunho. Foi ao Parlamento Europeu receber o Prémio Cidadão Europeu, deixando muitos outros contemplados a pensar por que razão estavam ali.

 

2. A Europa não desconhece a sua História trágica. Mas, por vezes, parece não ser capaz de detectar os sintomas do mesmo mal que, por duas vezes, a deixou em ruínas. Hoje, o nacionalismo infiltra-se através de portas ligeiramente entreabertas, nas pequenas letras dos discursos, nas cedências políticas às mesmas ideias que estiveram tanto tempo adormecidas, que já nem nos lembrávamos delas. O “Brexit” é o resultado dessa desatenção, que nenhum dos defensores do referendo britânico acreditava ser possível. É esta a maior ironia e a melhor explicação para a desorientação do Governo britânico nas negociações com Bruxelas. Alguém tem de saber o que anda a fazer neste doloroso processo de separação e, já que Londres não consegue, é um bom sinal que os líderes europeus tenham aberto a possibilidade de dar uma pequena folga à primeira-ministra britânica, aceitando começar a tratar das relações bilaterais que devem suceder-se ao “Brexit”. Ainda não é certo, mas é uma hipótese a ser debatida na cimeira de Dezembro. É para isso que a Europa serve: para a reconciliação entre os países europeus, mesmo em momentos de ruptura. É preciso que o “Brexit” afecte o menos possível o destino do Reino Unido: a Europa ainda precisa dele. E nem vale a pena dizer quanto os britânicos precisam dela. De cada vez que Donald Trump fala, aumentam as preocupações de Londres. “Roma e Atenas”, “ponte sobre o Atlântico”, “farol da liberdade” parecem agora pertencer ao passado. A América de Trump não precisa de aliados, nem os quer. Por enquanto, é esta a realidade.

 

3. A vitória de Macron em França fez-nos acreditar que as correntes nacionalistas, populistas e xenófobas que contaminaram nos últimos anos a política europeia estavam em recessão. As eleições alemãs provaram que a vaga continua, atingindo um dos países mais estáveis da Europa com uma força que ninguém antecipou. Precisamente quando a Europa precisa, mais do que nunca, de uma Alemanha verdadeiramente europeia. A batalha está longe de poder considerar-se vencida. A Catalunha mostra-nos de uma forma ainda mais dramática do que o “Brexit” (apesar da Escócia) como o risco do nacionalismo está latente e se expressa na primeira oportunidade. Não convém que nos perdamos nos pormenores deste combate entre Barcelona e Madrid. A Catalunha é rica e não quer compartilhar a sua riqueza (tal como o Norte de Itália), vê-se como uma nação, e o nacionalismo é sempre suficientemente cego para ignorar as consequências de uma independência unilateralmente proclamada. Os catalães e alguns dos seus dirigentes (outros têm propósitos muito mais radicais) só agora descobriram que a Europa não é, afinal, a alternativa a Madrid. A “Europa das Regiões” nunca existirá, a não ser que a integração europeia se transforme num Estado federal, à semelhança da Alemanha ou dos Estados Unidos. Foi um sonho idealista, que hoje sabemos impossível, mas que volta hoje a emergir, na versão mais perigosa do nacionalismo. Em Espanha, no Reino Unido, na Bélgica, em velhas divisões que já tínhamos dado como superadas. Ou com a rejeição do outro, do que é diferente, dentro e fora das suas fronteiras nacionais.

 

4. Hoje a Áustria vai às urnas, numas eleições a que damos menos atenção do que deveríamos (ver páginas 16 e 17 desta edição). A Áustria foi um dos países condenados à neutralidade, durante os anos da Guerra Fria. Como a Finlândia, era a barreira difusa da Cortina de Ferro, com os benefícios do lado ocidental, mas com limitações à sua soberania. Durante décadas, os dois grandes partidos, os sociais-democratas e os democratas-cristãos, repartiram o poder entre si, dividindo irmãmente as benesses correspondentes. O fim da Guerra Fria levou-a até à União Europeia (1995), mas ainda não à NATO. Conseguiu, em 1986, eleger um Presidente (Kurt Waldheim) sobre o qual pendiam suspeitas fundadas de ter colaborado com o exército nazi mais do que seria necessário, depois da anexação da Áustria. Abriu espaço para a afirmação de um forte partido de extrema-direita no início do século XXI, que chegou a ser parte de um governo de centro-direita e que levou (foi a única vez) à suspensão do seu voto no Conselho Europeu e nas instituições europeias. No ano passado, as eleições presidenciais travaram-se entre um candidato da extrema-direita e um candidato que emergiu dos Verdes. Tiveram de ser repetidas e acabaram por dar a vitória ao candidato do sistema democrático, mesmo que por uma margem mínima. A Europa embandeirou em arco: vêem, não foi só na França que o nacionalismo foi travado. As eleições de hoje vão, com toda a probabilidade, dar a vitória a um jovem líder do centro-direita (31 anos), Sebastian Kurz, que estará disponível para aceitar a direita extremista no seu governo, depois de dez anos de uma “grande coligação” que terminou em acusações mútuas disputadas em tribunal. A extrema-direita adoçou o discurso e libertou-se dos aspectos mais ofensivos da sua ideologia. Os partidos centrais interiorizaram algumas das suas bandeiras, sobretudo as que dizem respeito aos imigrantes e aos refugiados. Em países onde se vive bem, como a Áustria, a Alemanha, a Dinamarca ou a Suécia, a questão identitária tornou-se mais importante do que as questões sociais.

 

5. Não costumo responder a quem me critica nas páginas dos jornais, incluindo este. Sem querer ofender ninguém, parece-me uma espécie de bravata desnecessária. “Atacaste-me? Espera pela volta.” Mas quando cheguei ao jornal, vinda de Bruxelas, tinha à minha espera uma recepção um tanto ou quanto inesperada: “Com que então pertences ao PSD e nunca disseste nada a ninguém?” Lá estava a coluna habitual de Francisco Louçã, que me incluía na “artilharia” dos que vieram à praça pública defender “o seu (meu) partido”. O título da minha última coluna de opinião era precisamente “O PSD tem futuro. O PCP não tem”. Talvez esteja errada. Vivemos num tempo em que o que damos como provável hoje passa a ser improvável amanhã. Não milito em nenhum partido, mas não costumo esconder aquele em que voto. Creio que Louçã também sabe. E, já agora, aproveito a oportunidade de esclarecer que votar no PSD não é nenhum insulto, por uma razão simples: o PSD e o PS foram e ainda são os pilares da democracia liberal em que vivemos desde o Revolução. Para mim, é o critério fundamental. Mas confesso que prefiro a velha profecia de Willy Brandt sobre a contestação estudantil que varreu a Europa nos anos 1960 e na década seguinte, que diz mais ou menos assim: “Um jovem esquerdista hoje será um bom social-democrata amanhã.” Sabe-se de que social-democracia falava.

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