O grande projecto turístico da Coreia do Norte tem praia, Sol e... mísseis

Wonsan é a grande aposta de Kim Jong-un para captar investimento estrangeiro. Quer ser uma espécie de Benidorm, mas com vista privilegiada para o programa de dissuasão nuclear norte-coreano.

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Kim Jong-un em Wonsan, talvez a cidade em que nasceu KCNA/Reuters

Na cidade costeira de Wonsan, famílias norte-coreanas fazem barbecues na praia, pescam e comem gelados de geleia real. Para Kim Jong-un, é um resort de férias de Verão, um futuro templo do turismo. E um bom local para fazer testes de mísseis balísticos.

A cidade de 360 mil habitantes está a ser reconstruída, para ser convertida num destino turístico de luxo. E ao mesmo tempo, foram feitos cerca de 40 testes de mísseis na zona, parte da política de aceleração do programa de dissuasão nuclear da Coreia do Norte.

“Para os estrangeiros, pode parecer uma loucura lançar mísseis de um local que se quer desenvolver economicamente, mas é assim que Kim Jong-un governa”, diz Lim Eul-chul, especialista em economia norte-coreana da Universidade de Kyungnam, na Coreia do Sul.

Esta combinação de turismo e armas nucleares é emblemática da estratégia de sobrevivência de Kim Jong-un, dizem investigadores e próximos do projecto.

Os planos para o desenvolvimento de Wonsan foram anunciados em 2014 e têm crescido rapidamente. Estão dispersos por 160 páginas em quase 30 brochuras publicadas pela Wonsan Zone Development Corporation em 2015 e 2016, e disponíveis em coreano, chinês, russo e inglês.

O turismo é uma das cada vez mais reduzidas fontes de receitas da Coreia do Norte que não estão sob a alçada das sanções das Nações Unidas, e as brochuras anunciam que estrangeiros podem fazer investimentos no valor de 1,5 mil milhões de dólares na Zona Turística Especial de Wonsan, que cobre mais de 400 km2. Kim já lá construiu uma estância de esqui e um aeroporto.

680 atracções

Segundo as brochuras, a Zona inclui 140 vestígios históricos, dez praias com areal, 680 atracções turísticas, quatro fontes de água mineral, vários resorts balneares e lagos naturais e “mais de 3,3 milhões de toneladas de lama com propriedades terapêuticas no tratamento de nevralgias e colite.”

Nos projectos que Kim propõe aos investidores incluem-se uma cadeia de lojas de 7,3 milhões de dólares, um plano de desenvolvimento do centro da cidade de 197 milhões de dólares e um campo de golfe de 123 milhões de dólares.

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Crianças nas praias de Wonsan KCNA/REUTERS

Já este ano, Kim enviou 16 prospectores a Espanha para obterem ideias para Wonsan. Visitaram o complexo turístico de Marina d’Or, em Valencia, e a Terra Mítica, parque de diversões em Benidorm, que diz dirigir-se dirige aos fãs de “sensações extremas”. “Visitaram os locais e filmaram-nos”, revelou um porta-voz da embaixada norte-coreana em Madrid. Ambos os parques confirmaram as visitas.

Ainda não se conhecem parceiros estrangeiros para os projectos de Kim em Wonsan, e o novo aeroporto, cuja construção terminou em 2015, ainda não recebe voos internacionais. Os Estados Unidos proibiram recentemente os seus cidadãos de viajarem para a Coreia do Norte, e as sanções internacionais interditam qualquer parceria económica com o Estado-pária.

Mesmo assim, o plano é vital para Kim Jong-un. Quando chegou ao poder, em 2011, Kim herdou uma sociedade administrada pelos militares, mas cuja população dependia em grande escala da economia paralela. No papel, a Coreia do Norte tem uma economia centralizada, mas na verdade 7 em cada dez pessoas sobrevivem através do comércio privado, diz Thae Yong Ho, ex-embaixador norte-coreano em Londres e que protagonizou com a família uma célebre deserção em 2016.

O comércio privado interno torna Kim mais vulnerável do que parece, disse Thae à Reuters. Para garantir a sua sobrevivência, o líder norte-coreano procura controlar tanto as forças militares como as económicas.“Kim Jong-un sabe que só conseguirá controlar a sociedade e garantir uma liderança longa se aumentar o seu papel e influência na economia”, acrescentou Thae.

Uma parte da resposta está nas armas nucleares – que Kim acredita terem custos de manutenção mais baixos que o convencional armamento pesado da Coreia do Norte. E projectos como o de Wonsan são a outra parte. Kim pretende desviar parte dos fundos que entrega aos militares para a economia civil. 

Os clientes

Segundo as brochuras de Wonsan, a Coreia do Norte quer atrair mais de um milhão de turistas por ano no curto prazo e entre cinco a dez milhões num “futuro próximo”.

Não há estatísticas actualizadas sobre os turistas que visitam a Coreia do Norte. A China revelou em 2012 que mais de 237 mil chineses visitaram o país de Kim nesse ano, mas deixou de publicar esses números em 2013. Para efeitos de comparação, oito milhões de chineses visitaram a Coreia do Sul em 2016.

O Korea Maritime Institute, think tank da Coreia do Sul, estima que o turismo no país vizinho gera anualmente receitas na ordem de 44 milhões de dólares – cerca de 0,8 % do PIB. Afirma também que à volta de 80% dos turistas estrangeiros que visitam a Coreia do Norte vêm da China.

Não muito longe do projectado campo de golfe de 123 milhões de dólares, os planos mostram um complexo já existente, descrito como retiro de Verão do Departamento de Segurança do Estado, ou Bowibu, a entidade que administra os seis campos de prisioneiros da Coreia do Norte e que é responsável pela vigilância do Estado sobre os cidadãos.

E mesmo ao lado encontra-se o retiro da Direcção-Geral do Grupo Daesong – o Gabinete 39, responsável pela aquisição de bens de luxo para a família Kim.

Um terceiro complexo está reservado para a Sociedade Nacional de Seguros da Coreia, uma seguradora estatal que a União Europeia acusa de estar envolvida em fraudes de seguros.

As três entidades estão sob a alçada das sanções internacionais pelo seu papel na canalização de fundos para os programas nuclear e balístico de Kim.

Em 2014, Kim levou as hierarquias militares de topo a Wonsan e, na praia de areia branca onde se situa o seu palácio, ordenou aos seus almirantes que vestissem os calções de banho e nadassem 10 km à volta da baía, num teste às suas aptidões transmitido pela televisão. As filmagens mostram Kim sentado a uma secretária na areia, sob um guarda-sol branco.

Em Abril deste ano, Kim usou a praia junto ao novo aeroporto de Wonsan para realizar um exercício de artilharia que os media estatais descreveram como "o maior de sempre", e no qual “300 peças de artilharia móvel de grande calibre” dispararam na direcção de um alvo branco pintado numa pequena ilha a 3 km de distância. O bombardeamento, transmitido na televisão, transformou a ilha numa poeirenta paisagem lunar.

O porto do avô

Wonsan tem um simbolismo especial para a dinastia Kim: foi aí que Kim Il-Sung, avô de Kim Jong-un e primeiro líder da coreia do Norte após o fim do domínio colonial japonês, em 1945, desembarcou para tomar de assalto o país.

Junto ao cais há estátuas dos dois anteriores líderes, e os turistas devem curvar-se e comprar flores de plástico para lhes oferecer. Ao lado do palácio da família Kim, o Campo Juvenil de Songdowon acolhe há décadas “jovens pioneiros” de países de inspiração soviética.

Quando, em 2009, o jovem Kim foi escolhido como herdeiro de Kim Jong-Il, o seu currículo era diminuto, nota Kim Young-Hui, que encabeça uma equipa de investigadores norte-coreanos no Korea Development Bank em Seul. Se conseguir desenvolver Wonsan ficará na História como um grande empreendedor. “Ele tem fortes razões políticas para desenvolver Wonsan”, diz Kim Young-Hui, que nasceu na cidade e desertou para a Coreia do Sul em 2002.

Wonsan tem um lugar especial no coração de Kim, diz Michael Spavor, consultor canadiano que em 2013 bebeu cocktails com Kim Jong-un a bordo de uma dos seus iates, depois de terem feito jet-ski na baía. “Ele falou-me de… desenvolver e melhorar a cidade para a população e… atrair para a área turistas e empresários estrangeiros “, declara Spavor, que dirige a Paektu Cultural Exchange, que faz investigação económica na Coreia do Norte.

Não há dados oficiais sobre o local de nascimento de Kim, mas muitos dos nativos de Wonsan acreditam que ele nasceu lá, em parte por ter passado a sua infância no palácio.

Bons negócios?

As brochuras de Wonsan prometem grandes lucros, incluindo taxas internas de retorno entre 14% e 43%. A cadeia de lojas de 7,3 milhões de dólares, por exemplo, permite aos investidores estrangeiros adquirir uma participação até 61,3 %. Em troca, os investidores poderiam esperar um lucro anual líquido de 1,3 milhões de dólares.

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Kim Jong-un num aquário em Wonsan KCNA/REUTERS

As brochuras oferecem condições especiais aos estrangeiros, afirmando que os seus direitos estão protegidos pelo Estado e que não teriam limitações no envio de dinheiro para o estrangeiro. Os terrenos só estão disponíveis para aluguer por 50 anos e não podem ser comprados, mas os investidores podem vender as licenças de aluguer.

Outros projectos são menos generosos. Um deles oferece a oportunidade de lucrar com a popularidade da cerveja norte-coreana, através de um investimento inicial de 2,4 milhões de dólares numa nova fábrica de cerveja em Wonsan. A proposta indica que os investidores estrangeiros serão sujeitos a uma taxa de transacção de 15%, e outras deduções. E depois há um imposto sobre o rendimento de 14%. Estas subtracções reduzirão quase a metade o lucro anual previsto, para cerca de 150 mil dólares.

Oficialmente, os investidores domésticos não estão sujeitos impostos, mas peritos avançam que o Estado fica com cerca de 70% dos lucros das empresas estatais.

De acordo com uma brochura de 2015, o interesse dos investidores estrangeiros no projecto de Wonsan estava a “crescer de dia para dia”. Mas um investidor ocidental que participou numa conferência em Wonsan, em 2015, disse que as autoridades norte-coreanas mostraram pouca compreensão sobre as necessidades dos investidores. Cerca de 200 pessoas, chinesas e ocidentais, ouviram uma palestra sobre as perspectivas de investimento na zona e foram depois levadas num tour.

“Pensei que fosse ver algum pragmatismo”, conta Simon Cockerel, da Koryo Tours, empresa com sede em Pequim. “Mas limitaram-se a repetir que as oportunidades eram fantásticas e não admitiam que houvesse falhas ou problemas com a área ou com os projectos.”

Han Jin-myung, diplomata norte-coreano que esteve destacado no Vietname antes de desertar em 2015 para a Coreia do Sul, diz que foi encarregado de promover o projecto de Wonsan no estrangeiro, mas que teve pouco sucesso: “Acabámos por só conseguir vender ervas medicinais e remédios norte-coreanos.”

 

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Uma área de lojas vazia em Wonsan Carlos Barria/REUTERS
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