David Fincher regressa: nem todos os serial killers gostam de ópera

Mindhunter já está disponível no Netflix e é mais um testemunho da obsessão do realizador por assassinos em série.

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A figura icónica do serial killer na cultura pop é Hannibal Lecter, o psicopata canibal de gosto refinado, gourmet, melómano, um monstro com uma máscara suave de boas maneiras. Anthony Hopkins deu-lhe vida no cinema, Mads Mikkelsen fez o mesmo na televisão, mas Lecter foi uma criação literária de Thomas Harris com uma dose de realidade. Não que se tenha baseado num assassino em série que acompanha um prato de fígado (humano) com favas e uma garrafa de Chianti, mas encontrou inspiração nos métodos de psicologia criminal utilizados pelo FBI e que foram sistematizados nos anos 1970, quando ainda nem sequer se usava a expressão serial killer.

Esses métodos também são o ponto de partida de Mindhunter, uma série de dez episódios produzida por David Fincher e que estreou nesta sexta-feira no serviço de streaming Netflix. Não é uma série de “caça ao homem”, ou, pelo menos, não é esse o foco. É sobretudo uma caça à compreensão da psicopatia dos assassinos em série, tendo como base um livro escrito por dois agentes do FBI que fizeram múltiplas entrevistas a vários assassinos em série no cárcere.

Embora as personagens principais da série, os agentes Ford (Jonathan Groff) e Tench (Holt McCallany), sejam fictícias, a sua história é real. Eles deram mesmo uma volta aos EUA para entrevistar alguns dos mais infames e mortíferos assassinos, como Ed Kemper (o assassino das universitárias), David Berkowitz (o filho de Sam) ou Charles Manson (o líder do culto responsável pela morte, entre outros, de Sharon Tate). Depois, criaram uma espécie de manual de instruções para a captura deste tipo de criminosos, através da identificação de traços psicológicos, estratégias que são usadas por autoridades do mundo inteiro até hoje.

Mindhunter é mais uma colaboração de Fincher com a Netflix, depois de House of Cards, e também serve como testemunho da sua obsessão por serial killers – Sete Pecados Mortais (1995), Zodiac (2007) e Os Homens que Odeiam as Mulheres (2011) estão entre os melhores filmes de Fincher. Mas esta série, em que ele assumiu a realização dos dois primeiros episódios e dos dois últimos, não tem um “John Doe” que só se revela nos últimos dez minutos, ou um assassino com alcunha e sem identidade, muito menos um Hannibal Lecter que vai a exposições de arte e gosta de ópera. Não era isso que Fincher queria quando pensou em Mindhunter – que já tem uma segunda temporada garantida.

“Não quero falar dos gourmet, daqueles que vão à ópera… Para mim, são pessoas que cresceram em circunstâncias horrendas. Não é uma questão de empatia ou simpatia, é um facto. Criou-se um conceito literário de que o que separa os predadores das presas é uma linha ténue e sempre achei que já era tempo de mostrar que a razão pela qual eles nos fascinam tanto é que nós não somos nada como eles. Eles são indecifráveis”, dizia Fincher numa entrevista recente. “Não tenho nada contra Hannibal Lecter, mas ele não se parece muito com o que estes homens são na realidade”, acrescenta Holt McCallany, um dos actores principais e habitual colaborador de Fincher.

Não conhecendo o livro e tendo apenas a série como referência, percebe-se a influência de Mindhunter em muita ficção que usa os assassinos em série como leitmotiv, na construção dos próprios assassinos em série e de quem os persegue – voltando aos romances de Thomas Harris, o ponto de partida dos dois primeiros é igual, agentes que visitam Hannibal Lecter na prisão para que este os ajude a apanhar outros como ele.

Intencional, ou não, também há aqui um cheirinho a Ficheiros Secretos, apresentando a tal unidade de ciências comportamentais do FBI como uma coisa sem credibilidade, sem futuro e, por isso, empurrada para uma cave bafienta sem luz natural, como acontecia com Mulder e Scully. Intencional é a utilização no final do segundo episódio (alerta para spoiler musical) de Psycho Killer, dos Talking Heads, a utilização menos subtil de uma música na história da televisão.

A rubrica Televisão encontra-se publicada no P2, caderno de domingo do PÚBLICO

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