Não será Beyoncé a ofuscar as Ibeyi

Depois de um prodigioso disco de estreia, as Ibeyi não desiludem e regressam com Ash, delicioso encontro entre soul, jazz, música cubana e tradição ioruba num disco com um contundente fundo político.

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Lisa-Kaindé e Naomi Díaz são filhas do percussionista cubano do colectivo Buena Vista Social Club, Miguel ‘Angá’ Díaz

No momento do lançamento do mais abertamente político e militante álbum da sua carreira, Beyoncé celebrou a chegada de Lemonade com um especial televisivo no canal HBO, filmado numa antiga plantação de escravos, em que se fazia acompanhar de mulheres que gostava de ver como modelos para a sua filha: a actriz Amandla Stenberg, a actriz e cantora Zendaya, o duo r&b Chloe x Halle, e o duo franco-cubano Ibeyi. Ao escavar mais fundo em toda a cultura africana num orgulhoso enraizamento em que se reclamava parte de uma vasta família, Beyoncé estabelecia pontes com o afro-futurismo mas também com religiões e culturas seculares como a ioruba. Já antes, na primeira actuação após o anúncio da sua gravidez, a cantora apresentou-se no palco dos Grammys vestida de dourado, com uma imagem que era uma evocação assumida à divindade ioruba Oxum, orixá da beleza, da feminilidade e da água do rio.

A ligação às Ibeyi tornava-se também mais sólida e explícita devido a esse interesse. Era à voz de Oxum que as duas se ligavam no acto de purificação que se ouvia em River, do álbum de estreia. Levadas pela mãe aos ensaios de um coro tradicional ioruba em Paris, cidade onde nasceram e cresceram, Lisa-Kaindé e Naomi Díaz começaram a descobrir as suas vozes nesse específico contexto. Não por acaso, de resto, era com um tema dedicado à divindade Eleggua (baptizado em sua homenagem) que o álbum homónimo se iniciava; assim como é pouco acidental que essa mesma canção oferecida à orixá dos caminhos e das estradas surja agora, mais velada, a fechar Ash, o segundo álbum das gémeas. “Isso é muito importante na religião ioruba”, explica Lisa-Kaindé ao Ípsilon. “As cerimónias iorubas abrem e fecham com uma canção para Eleggua. Como abrimos o primeiro álbum com uma canção para ela, sentimos que precisávamos de fechar este também com um tema para Eleggua.”

Desde que surgiram ao lado de Beyoncé, muitos confundiram as Ibeyi com a característica ofuscante da cantora norte-americana, tomando-as como suas protegidas e parte da sua corte. Só que o seu curto percurso de vida pública começara logo com a edição, aos 19 anos, de um soberbo álbum de estreia pela XL Recordings de Richard Russell, que se tornou o aliado de estúdio perfeito, produzindo e usando o seu apurado sentido de canção para lhes guiar os passos nas gravações.

Beyoncé não inventou as Ibeyi, nem tão-pouco as revelou. Mas parece ter plantado uma semente do seu activismo nas duas irmãs, filhas do histórico percussionista cubano do colectivo Buena Vista Social Club, Miguel ‘Angá’ Díaz. No man is big enough for my arms, tema ardente e que parece enredar-nos num encantamento do qual não conseguimos nem queremos escapar, contém um sample do exemplar discurso de Michelle Obama em resposta a comentários misóginos e à fanfarronice sexista de Donald Trump revelados durante a última campanha presidencial norte-americana. Em fundo, ouvimo-la dizer com uma voz fremente de injustiça “the measure of any society is how it treats its women and girls”. Depois, a combinação única de hip-hop, jazz, música cubana e cânticos ioruba toma conta do canto das duas irmãs, num belíssimo enviesamento de tema blues/gospel.

“Foi muito importante para nós compormos essa canção”, confessa Lisa-Kaindé. “Lemos essa frase [“no man is big enough for my arms”] num livro, gostámos tanto e achámo-la tão poderosa que quisemos escrever uma canção em torno disso. Depois começámos a procurar o sample de uma voz feminina, de uma mulher que falasse para mulheres, e nessa altura o discurso de Michelle Obama estava na cabeça de toda a gente. Era incrivelmente empowering, voltámos a escutá-lo no estúdio e apaixonámo-nos novamente pelo discurso.”

As Ibeyi acreditam que “ninguém se deve sentir obrigado a falar de um tema como este se não o sentir verdadeiramente”. É preferível ficar calado a falar sem uma motivação real, argumentam, ao mesmo tempo que reconhecem o quanto se sentem inspiradas e felizes por verem mulheres artistas que admiram munirem-se de palavras afiadas para combaterem e tentarem desarmar injustiças baseadas no género. Se o combate nas trincheiras do feminismo está bem delimitado em No man is big enough for my arms, as questões de confronto e discriminação raciais surgem também no esplendoroso r&b cubano que é Deathless, tema desencadeado pela experiência de Lisa-Kaindé no metro de Paris, aos 16 anos. A caminho de uma aula de piano, foi abordada a despropósito com agressividade por um polícia pouco disponível para acreditar que não transportasse drogas na mochila, obrigando-a a descalçar-se e despejar o conteúdo da mala no chão. A certeza de que foi sujeita a uma humilhação devido ao seu frondoso cabelo afro, essa certeza despeja-a ela agora numa canção a que quer dar o peso de um hino com várias vozes a juntarem-se para entoar “We are deathless”.

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David Uzochukwu

Também o livro Citizen: an American Lyric, de Claudia Rankine, um poema que verseja de forma quase documental sobre a questão racial nos Estados Unidos, serviu de referência para a criação de Transmission. Diversas peças que formam um todo de conteúdo claramente mais político do que acontecia no primeiro álbum, esse quer era espécie de crónica de adolescência das duas irmãs, um lamento de amor e morte – do pai e de uma irmã – diante das suas sepulturas, catarse de uma dor que soava adocicada, que nos agarrava e não deixava partir. Embora mais político, Lisa-Kaindé classifica Ash como “um álbum deste tempo”. “Diria que fala daquilo que acontece no mundo e que é o mundo que está a tornar o disco político. Deathless ou No man is big enough for my arms não seriam canções políticas se o mundo não estivesse no estado terrível em que se encontra. Somos apenas duas mulheres a transmitir a nossa visão daquilo que está a acontecer no mundo.”

As dores em algo belo

Transmission, tema que conta tanto com a participação da cantora soul Meshell Ndegeocello como de Maya Dagnino (mãe das gémeas Ibeyi), é classificado por Naomi e Lisa como “o coração do álbum”. Em parte, porque é de transmissão que trata toda a música do duo. Muito para lá de um aspecto mais corriqueiro de “transmissão para o público e do público de volta para o palco”, a transmissão que aqui se encontra é aquela que acontece entre pais e filhos, entre mestres e discípulos, aquela que estabelece uma cadeia cultural e de referências. Daí que Maya leia um excerto do diário de Frida Kahlo durante o tema – que se desvela em tom de ritual parareligioso –, a pedido das filhas: “Pies para que los quiero si tengo alas para volar”, recita. É um pedido estimulado por uma “admiração desde crianças pela Frida Kahlo”, nota Naomi, “porque a nossa mãe é uma grande fã – temos muitos livros e inspirou-nos muito.” Pode soar demasiado vago, mas Lisa aponta para o exemplo que pretendem seguir: “Ela transformava as suas dores em algo belo, e é também isso que tentamos fazer.”

Tal como acontecia em Ibeyi, a música do duo alimenta-se sofregamente de duas personalidades distintas e complementares: Naomi cresceu de ouvidos atentos ao hip-hop e encarrega-se das percussões (começou a tocar cajón um dia depois da morte do pai, assumindo essa herança) e do pulsar rítmico das canções; Lisa-Kaindé sempre foi mais próxima do jazz e da soul, responsabilizando-se pelo conteúdo mais melódico. É deste encontro que nasce uma sonoridade que poderia ser a de uma Nina Simone nascida em Cuba e acompanhada por El-P, que aqui é depois expandida pela mão criteriosa de Richard Russell enquanto produtor. Se a preparação de Ash obedeceu a um processo em tudo semelhante ao disco de estreia, a diferença maior foi provocada pelos palcos que foram habitando durante dois anos de digressão. “Ao estarmos na estrada”, explicam, “sentimos que queríamos que as pessoas dançassem mais, suassem mais, que se mexessem mais e que cantassem mais alto – foi essa a música que quisemos criar para o segundo álbum.”

A espantosa consequência dessa opção acaba por ser um maior equilíbrio entre os deslumbrantes fios melódicos de Lisa (assombrosa Away away, Valé…) e as vocalizações mais nervosas, ásperas e frágeis (embora não menos sedutoras) de Naomi, soberba em temas como Waves ou Transmission.

Ash foi então parido com o palco em mente, tentando aproximar o estúdio de uma sala de concertos. Mas uma sala de concertos repleta de convidados – Ndegeocello, Chilly Gonzales, (a rapper espanhola) La Mala Rodríguez e Kamasi Washington. No caso de Rodríguez trata-se do primeiro tema que gravam em castelhano (Me voy), primeira canção em que sentiram que conseguiam adoptar a língua “mantendo o som Ibeyi”; Washington foi trazido, involuntariamente, pelos programadores de festivais, que no último Verão insistiram em colocá-los a actuar no mesmo dia e no mesmo palco. Os sucessivos encontros conduziram agora a Deathless, a que Kamasi empresta o seu esvoaçante e esbraseado saxofone.

Ibeyi arrancava com Eleggua. Ash começa com um sample das Vozes Búlgaras, num tema intitulado I carried this for years. Outra forma de dizer que há muito Lisa-Kaindé carregava esta vontade de criar uma música a partir das polifonias folk que produzem nela o mesmo efeito de entrega que as Ibeyi produzem em nós. Ou outra forma de dizer que por cada ciclo que se fecha há sempre outro que se abre.

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