2011-2015 ≠ 2005-2011

Passos Coelho fez três coisas extraordinárias como primeiro-ministro, que basicamente consistiram em não fazer coisa alguma.

Na passada segunda-feira, Fernanda Câncio escreveu um texto intitulado “Obrigada, Pedro Passos Coelho” que me provocou curiosas sensações. O texto começava assim: “Tenho lido nos últimos dias vários elogios a Passos Coelho. É normal. Compreensível que os adeptos e amigos lamentem a sua saída da liderança do PSD e mais compreensível ainda que queiram consolá-lo na derrota. Já mais difícil é aceitar o conteúdo de tais odes.” E vai daí, sustentada na sua excelente memória e na solidez da sua pesquisa, ela elencou uma longa série de erros políticos, promessas incumpridas e falhas de carácter, deixando Passos Coelho reduzido a pó. No último parágrafo, um lamento: “Lamento: não tenho prazer em zurzir em quem está de saída, mas o que é demais é demais.”

Como eu concordo que o que é demais é demais, fiquei a olhar para aquela longa lista de maldades e asneiras passistas e não encontrei forma de negá-las: a maior parte delas era, de facto, verdadeira. Passos fez tudo aquilo e cometeu todos aqueles erros. Como se justifica, então, que eu seja um dos que gostaria de o consolar na hora da derrota? Cheguei à conclusão que cada um de nós tende a valorizar em excesso as qualidades das pessoas que nos agradam, e a desvalorizar em excesso as qualidades das pessoas que nos desagradam. Desta vez, a Fernanda só viu os defeitos. Defeitos justos, com certeza, mas que não pintam o quadro todo. Por isso, faço hoje questão de sublinhar aqui as principais qualidades de Passos Coelho, não só porque elas ajudam a compreender o presente, mas também porque explicam as enormes diferenças em relação ao passado.

Passos Coelho fez três coisas extraordinárias como primeiro-ministro, que basicamente consistiram em não fazer coisa alguma. Foram três simples, mas magníficos, “nãos”. 1) Passos Coelho não se intrometeu na comunicação social. 2) Passos Coelho não se intrometeu na justiça. 3) Passos Coelho não ajudou Ricardo Salgado. Pode parecer pouca coisa a Fernanda Câncio, mas é muitíssimo. Reparem: não há aqui troika, nem liberalismo. Apenas respeito pela decência num regime democrático. Nesse campo tão importante, Passos merece os mais rasgados elogios, numa ruptura abençoada com o tenebroso arco 2005-2011.

Claro que esses “não” foram um pouco mais complexos. Enquanto Miguel Relvas esteve no governo houve intromissões na comunicação social. Mas Relvas caiu em virtude de uma falsa licenciatura, assumida numa auditoria promovida por Nuno Crato — logo aqui há um mundo de diferenças. E Miguel Poiares Maduro, que o substituiu, teve um papel fundamental na transformação da RTP, resgatando-a das mãos do governo.

No campo da justiça, Passos Coelho escolheu para procuradora-geral da República Joana Marques Vidal, que merece a nossa eterna gratidão. Mais um “não” magnífico: ela não se intrometeu nas investigações. Note-se que o Ministério Público não andou atrás de socialistas — andou atrás de todos os que fossem justificadamente suspeitos. Miguel Macedo demitiu-se por causa de um processo judicial e não se ouviu um pio no PSD. Respeito total pela separação de poderes.

Finalmente, a queda de Ricardo Salgado. Duvido muito que ele não fosse amparado pelo socialista de plantão em São Bento. E isso jamais esquecerei. A longa lista de críticas que Fernanda Câncio faz a Passos Coelho é justíssima. No entanto, ela comete o erro de se focar excessivamente no acessório, ignorando tudo o que de mais importante aconteceu à sua volta. 

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