O arquipélago de todas as cores

Seduz surfistas, atrai hedonistas, magnetiza os amantes do silêncio e da natureza. Bocas del Toro, no mar das Caraíbas, com nove ilhas, 50 cayos e duas centenas de ilhotes, deve muito à indústria da banana e nada fica a dever à ideia que temos de paraíso.

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Não via mais do que uma das pontas do arco-íris que, como uma flor de múltiplas cores, parecia emergir da vegetação que cobria uma colina com contornos suaves. As matizes, subindo até tocar um céu que se vestia de um cinzento-chumbo, ameaçando chuva, pareciam confirmar, logo ali, o caleidoscópio de tonalidades que imaginava no meu cérebro quando pensava no arquipélago de Bocas del Toro.

Chegara a Almirante pouco antes de perscrutar os primeiros alvores do dia e só depois de este se materializar é que, de táxi, me deixei conduzir ao porto para apanhar o ferry. Já no interior do Baltija, um idoso que seguramente terá rasgado tantos mares, sento-me no bar ao lado de um casal de holandeses que, como eu, se deixam seduzir pelo cenário envolvente, pela força da natureza que apenas é descaracterizada pelo grande número de contentores de uma conhecida marca de bananas que estão empilhados à espera de serem carregados sabe Deus para onde. Ao vê-los, com as suas letras garrafais, lembrei-me da história que um polícia, também de nacionalidade holandesa, me contara uns meses antes, sobre a apreensão de uns bons quilos de cocaína, no porto de Roterdão, dentro de caixas de Chiquita. Não pude deixar de sorrir.

Chiquita é hoje uma marca mundialmente famosa mas poucos saberão que na sua origem esteve, na primeira metade do século XIX, a United Fruit Company, a maior produtora e exportadora de bananas do mundo liderada por famílias escocesas e inglesas que, para escaparem aos impostos, deixaram para trás a Jamaica e outras possessões britânicas nas Caraíbas para se estabelecerem no Panamá. A empresa, com os seus escravos provenientes das ilhas colombianas de Providência e San Andrés, foi fundada em 1826 e, desde esse ano em diante, tudo mudou na ilha Colón — logo, a sua aparência, com uma extensa área coberta por um mar de bananeiras, depois a sua arquitectura e, finalmente, porque o dinheiro corria com a pressa de um rio, a sua idiossincrasia.

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O Baltija parte, sem pressa, alguns panamianos, bem como dois agentes da polícia, de regresso ao trabalho, concentram a sua atenção num pequeno televisor numa sala anexa, outros, segurando copos de café ou cerveja, juntam-se a nós, ao casal holandês e a mim, muito mais atentos à paisagem do que eles — não por falta de sensibilidade, tão-só por uma questão de rotina. Pequenas casas, sobre palafitas, bordejam a margem, uma ou outra lancha, com turistas a bordo, desliza pelas águas a uma tal velocidade que chego a ponderar a hipótese de o Baltija se ter detido por instantes naquele tapete esverdeado; em redor, o verde é também a cor dominante em contraste com um céu escurecido cujas nuvens não tardarão a ser varridas para deixar ver um sol que queima tudo à sua volta logo às primeiras horas do dia, mal a frescura matinal se evapora.

Três horas depois, o número de cores que avisto supera aquelas que o arco-íris me deixara ver, tantas são as casinhas de madeira que, com os seus alpendres, pintadas de amarelo, de azul, de rosa, de verde, de vermelho, umas mais fortes, outras mais esbatidas, se debruçam sobre as águas também decoradas com embarcações que têm como fundo árvores de grande porte e idade incerta.

Ao largo, como que pousado sobre um mar que cintilava, achava-se um navio da guarda costeira norte-americana.

A primeira impressão, após observar aquele quadro vivo, superava as expectativas criadas em função de um conjunto de fotografias de que, tenho de o admitir, chegara a desconfiar — o mundo muda, o ser humano por vezes é cruel com a natureza, o homem facilmente se despoja da noção de estética em função das suas necessidades e dos seus interesses.

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Não se revelou fácil a manobra mas o Baltija, capitaneado por um homem grande que via através do vidro, atracou na cidade de Bocas del Toro, na ilha de Colón, já o sol ia quase a meio na abóbada cada vez mais despida de nuvens, abrindo a sua boca para libertar carros, camiões, turistas e panamianos para as ruas tão coloridas e tão cheias de vida. Caminhei por uma delas, lançando olhares para todo o lado, até me fixar numa imagem pintada sobre a porta de uma pizzaria que parecia exprimir o sentido de humor destas gentes com quem desejava passar os meus próximos dias, mais ou menos, consoante o prazer que fosse retirando da minha experiência: um pouco mais de três quartos de pizza, já cortada e coberta de rodelas de chouriço e de cogumelos, ao lado da qual se anunciava que 76% era deliciosa, como deliciosos eram também os restantes 24%.

Sentado na recepção, em frente a um portátil, só ao fim de alguns segundos, apercebendo-se da minha presença, é que levantou os olhos, fazendo-o com uma expressão amistosa à qual não faltava um sorriso que tinha qualquer coisa de bondoso
- Jou Scroop. Encantado.
O prazer também era meu. Não lhe disse, mas desconfiei do nome.

A pequena Carenero

Deixei a mochila numa minúscula arrecadação e, embora cansado, depois de uma viagem nocturna de autocarro desde a Cidade do Panamá até Almirante, saí para a rua decidido a dar um mergulho neste mar da Caraíbas que tantos sonhos desperta em tanta gente. À minha frente desenhava-se uma praça com árvores seculares, um coreto e algumas estátuas que, de tão agradável e tão tingida de serenidade, logo atenuou o meu desejo de sentir a temperatura da água numa qualquer praia que ainda não escolhera. Sentei-me num banco de pedra, ao lado de um vendedor de lotaria que, a despeito de ter um rádio entre mim e ele, emitindo um som roufenho, de quando em vez ia cabeceando um sono. Deixei o Parque Simón Bolívar entregue à sua indolência, abrigando sob a sombra das suas árvores turistas e residentes, e caminhei na direcção do embarcadouro onde saltei para uma lancha, já com um passageiro a bordo, que me levaria, pelo meio de um mar revolto, a Carenero, a mais pequena das ilhas do arquipélago, com apenas 350 habitantes e situada a poucas centenas de metros a sudoeste da ilha de Colón.

Carenero, com uma atmosfera relaxante e inspiradora, deve a sua toponímia à palavra carenar (querenar), a qual, numa linguagem náutica, significa levar uma embarcação a um determinado lugar para ser alvo de reparação ou de limpeza. Se a história não nos mente, em Outubro de 1502, os navios de Cristóvão Colombo, na sua quarta e última expedição, foram levados a este estaleiro para serem limpos, ao mesmo tempo que o almirante tentava recuperar de uma dor no estômago.

Quem parece ainda não ter recuperado, não de uma dor física mas de alma, é Adriano Cermenati, um italiano de Milão instalado há 17 anos na pequena Carenero. Quando o ouço, ao início de uma tarde de sol cada vez mais radioso, tenho dificuldade em perceber por que razão se apaixonou pela serenidade da ilha nesse virar do século.

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- Não há nada para fazer. Aqui corre-se o risco de morrer de tédio.

Não esboça sequer um sorriso. Fala com gravidade. Ao fundo, observo bonitas casinhas com pequenas varandas que quase beijam as águas azul turquesa do mar das Caraíbas. Junto à praia, os coqueiros, fustigados pelo vento, parecem acometidos da mesma vontade e inclinam-se perigosamente.

- Não há boas escolas, não há bons médicos, não há nada. Ontem, domingo, como não havia aulas, o meu filho esteve a ver televisão das nove da manhã até às dez da noite, conclui (porque para mim já chegava) Adriano Cermenati.

Eu, embora na minha qualidade de viandante e não de residente, vejo este pequeno território de forma diferente e observo o mundo, numa expressão mais global, também de uma maneira distinta. Se um filho planta os olhos na televisão durante 13 horas a culpa será do lugar onde vive? Não haverá, num arquipélago composto por nove ilhas, 50 cayos e mais de duas centenas de ilhotes, nada de mais interessante e criativo para fazer?

Acredito que sim.

E parto, percorrendo um trilho fronteiriço ao mar, certamente com uma expressão de alegria no meu rosto, feliz por admirar o silêncio que só os pássaros e as ondas quebram, feliz por saudar um ou outro surfista com a sua prancha debaixo do braço, feliz com as coisas simples da vida.

À sombra das árvores, mergulhando uma vez ou outra, observando os surfistas testando o humor das ondas, passo o resto da tarde numa pequena praia de areia fina, até me decidir, logo que o crepúsculo se anuncia, a regressar a Bocas, como é conhecida, na intimidade, a capital da ilha de Colón.

Gente feliz

- Sou eu mesmo. Não acreditas? Achas que os meus pais não gostavam de mim quando nasci?

Jou Scroop está agora sentado a uma mesa, ao lado da recepção, tendo como fundo uma imagem plena de cor. Sempre sorridente, entrega-se à conversa e, ao contrário do filho de Adriano Cermenati, manifesta a sua gratidão perante tudo quanto a vida lhe proporciona em Bocas del Toro, seja quando faz mergulho, seja quando passeia de bicicleta, seja quando pratica surf ou joga uma partida de xadrez com um cliente, seja quando o trabalho o chama.

- As pessoas que vivem aqui são felizes. Como em qualquer lugar do mundo, têm altos e baixos, mas este é um lugar que lhes permite estar sempre em contacto com a natureza e receber dela praticamente tudo o que necessitam. Em Bocas, pode-se morrer de várias causas mas nunca de tédio.

Mesmo em frente, no Parque Simón Bolívar, os candeeiros lançam as suas luzes e um grupo de jovens ensaia uma dança no coreto perante o olhar curioso de alguns turistas. Não são necessárias muitas horas para se perceber que Bocas vive em harmonia, com espaço para uma mestiçagem que se sente na ilha como em nenhum outro lugar do país: a população negra e crioula, bem como os brancos, alguns deles descendentes de antigos proprietários da United Fruit Company, convivem com as etnias locais dos guaymíes e, todos juntos, formam uma comunidade acolhedora que faz com que o turista se sinta em casa.

- Para quem chega, a primeira sensação, sem dúvida positiva, fica desde logo associada às águas cristalinas, à abundância da natureza, às palmeiras, aos mangues, às aves. Tudo isso fascina o turista numa fase inicial mas à medida que se vai adiando a partida, o que acontece com frequência entre muitos daqueles que nos visitam, facilmente se percebe que há uma energia alegre e positiva desta gente, admite Jou Scroop, de quem agora me despeço, vencido pelo cansaço.

Na manhã do dia seguinte, sento-me a tomar um café numa esplanada e, também sentada, numa mesa ao lado, está uma holandesa que, a julgar pela conversa, não tardará a colocar um ponto final na relação com o namorado que estará a esta hora a milhares de quilómetros de distância.

- Como é que percebes holandês? Olha que eu também falo português, garante Lynn Velraeds, a viver há alguns anos no Rio de Janeiro, antes de atirar para o ar um palavrão que me recuso a publicar mas do qual me rio com vontade.

O mundo passa à nossa frente, vendedores de fruta, de jogos de apostas, homens e mulheres de bicicleta, nativos e turistas.

- O que estás a achar de Bocas del Toro? Eu cheguei ontem à noite, fui a uma festa e senti de imediato que o ambiente é muito mais relaxante do que na Costa Rica, de onde venho. A Costa Rica é um país bonito, muito limpo, as pessoas são amáveis. Mas falta-lhe a vida e a alegria que aqui se sentem em poucas horas.

Juntos, a pé, fomos percorrendo ruas asfaltadas até chegar a um cemitério, onde já chegava o marulho do mar. Ao longo da praia El Istmito, também conhecida por “Playa La Cabana”, o ruído das ondas, onde alguns surfistas se aventuram, é o único que se escuta às primeiras horas da manhã. Por ali fico, deitado na areia e ao lado da jovem holandesa, até ao momento em que o sol, queimando tudo à sua volta, nos convida a regressar a Bocas, agora por ruas interiores, pelo meio de casas tão coloridas e aqui e acolá reveladoras do humor e criatividade dos locais — não evitei um sorriso quando vi, numa placa e no preciso instante em que um jovem pedalava na sua bicicleta com uma prancha debaixo do braço, um anúncio a uma guesthouse chamada Mar y Guana.

Um mundo diferente

Ao início da tarde, enquanto Lynn Velraeds optava por permanecer na cidade, abrindo uma avenida para a solidão que tantas vezes anseio, apanhei uma lancha e ao fim de dez minutos desembarcava em Bastimentos. Mal coloquei o pé em terra, percebi que estava num outro mundo, ainda mais sereno do que aquele que me envolvia em Bocas. Uma rua estreita, em betão, serpenteia pelo meio das casas, umas de cimento, outras de madeira, umas com telhado de zinco, outras ainda cobertas de colmo, pintadas com todas as cores que se possa imaginar; por vezes sobe, por vezes desce, há mulheres à conversa, meninos de bicicleta, adolescentes jogando futebol num ervado, uma menina que me cativa com um sorriso dócil — definitivamente, a ilha seduz-me desde o primeiro instante.

Até entrarmos na última década do século XX, a maioria dos adultos residentes em Old Bank (igualmente designada Bastimentos Town), nos dias de hoje cerca de 1500, viajava diariamente para Changuinola (uma cidade próxima da fronteira com a Costa Rica rodeada por um mar de plantações) para trabalhar na indústria da banana. Actualmente, muitos deles dedicam-se à pesca ou à agricultura e, tendo disponibilidade, ao turismo, servindo-se das suas embarcações para levarem os visitantes a lugares mais remotos da ilha, como a aldeia de Quebrada Sal, habitada pelos Ngöbe-Buglé (o mais representativo de todos os grupos indígenas do país com uma população estimada em 250 mil habitantes) e o melhor lugar para se ouvir o Gali-Gali, uma linguagem híbrida (inglês jamaicano e espanhol com alguns elementos da língua guaymí).

Um grupo de crianças, gozando um período de férias escolares, protege-se do sol numa área que também abriga alguns barcos; um brinca com a sua prancha, raramente conseguindo equilibrar-se; subo um trilho e, depois de passar por algumas casas de onde me chegam murmúrios, caminhando por entre galinhas que vão debicando aqui e ali, embrenho-me pelo meio da floresta, durante um pouco mais de 30 minutos, até desaguar na praia Wizard, a mais bonita da ilha de Bastimentos. Primeiro reparo numa espécie de neblina acima das ondas que rebentam com tanta força que me provocam um único sentimento — medo; logo reparo em dois agentes da polícia que me interpelam à minha passagem, apenas por curiosidade. Um deles, Emiliano Molina, aprecia uma boa conversa; o outro, revela-se mais perscrutador. Ambos estão há poucos dias  em Bocas de Toro, um lugar sossegado quando comparado com San Blás, onde estavam atentos às lanchas que transportavam droga entre o Panamá e a Colômbia — ou entre a Colômbia e o Panamá. Emiliano Molina mostra-se curioso, quer saber tudo de Portugal mas também gosta de falar da mentalidade panamiana.

- Não sabemos administrar o dinheiro. Se temos mil dólares, o mais provável é gastarmos mil e duzentos.

Sentada na areia fina da praia, uma polaca desenha numa folha a paisagem que a abraça; no mar são as ondas que abraçam uma loira com a sua prancha de surf — assim se passam os dias neste espécie de Éden onde a maçã foi substituída por uma banana.

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Bastimentos, onde foi criada, em 1988, a primeira reserva marinha do país, é de longe a ilha que mais me encanta, conferindo-me uma sensação de liberdade que tanto se sente em Wizard como, mais para diante, depois de percorrer um sendero, em Red Frog — com um pouco de sorte pode ver a rã vermelha.   

No regresso ao embarcadouro, uns dias mais tarde, procuro a menina que me sorrira de forma tão dócil. Não a encontro.

Mal entro no ferry, de regresso a Almirante — e a caminho da Costa Rica —, um homem grande, com umas mãos enormes, senta-se ao meu lado. Observo aquele rosto e agora me recordo de o ter visto emoldurado por uma janela, fazendo a manobra para atracar, uns dias antes, no porto de Bocas.

- Queres uma cerveja? Eu convido.

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Alexander, um russo que é o capitão do Baltija (ajudado por um ucraniano), pede ao cozinheiro que já está atarefado na preparação do almoço duas Balboas.

Três horas mais tarde, o ferry chega, sob um calor sufocante, a Almirante. Lá estão os contentores da banana Chiquita mas o céu não está decorado com o arco-íris. Na memória permanecem, no entanto, todas as cores do arquipélago, a vida com os seus prazeres singelos, a alegria das suas gentes.

É domingo e é provável que o filho de Adriano Cermenati esteja a esta hora a ver televisão.

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