Vitorino entre pianos, uma aposta ganha no Trindade

O espectáculo de Vitorino com Filipe Raposo e João Paulo Esteves da Silva, voz e dois pianos no Trindade, revelou-se uma compensadora e exaltante experiência musical.

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Vitorino no Trindade entre os pianos de Filipe Raposo e de João Paulo Esteves de Silva ADRIANO SILVA
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Vitorino e Filipe Raposo ADRIANO SILVA
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Vitorino, Filipe Raposo e João Paulo Esteves de Silva ADRIANO SILVA
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Vitorino e João Paulo Esteves de Silva ADRIANO SILVA
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Filipe e João Paulo num mesmo piano, a quatro mãos ADRIANO SILVA
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Vitorino, Filipe Raposo e João Paulo Esteves de Silva ADRIANO SILVA
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Vitorino ADRIANO SILVA
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Vitorino, Filipe Raposo e João Paulo Esteves de Silva ADRIANO SILVA
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Vitorino, Filipe Raposo e João Paulo Esteves de Silva ADRIANO SILVA

Dez anos depois de se ter apresentado no Teatro do Trindade com um espectáculo que depois veio a dar origem a um disco (Tudo. Alentejo, Amor, Lisboa, que em disco seria baptizado como A Preto e Branco), Vitorino voltou ao mesmo palco com um concerto bem diferente, só voz e dois pianos, com Filipe Raposo e João Paulo Esteves da Silva. Uma aposta ganha, não só pela qualidade dos músicos e dos respectivos arranjos, como pela simbiose do trabalho a três, que gerou um espectáculo notável: elegante, sóbrio, cerebral sem deixar de ser emotivo, capaz de agarrar o público do princípio ao fim.

E talvez esse trabalho a três tenha, logo desde o início, marcado o espectáculo no bom sentido. Entrando primeiro os pianistas, e depois Vitorino com uma rosa vermelha na mão (que depositou numa pequena mesa onde estavam uma garrafa de água e um copo de vinho tinto), o começo fez-se por um dos seus melhores discos, Eu Que Me Comovo Por Tudo e Por Nada (de 1992), que por coincidência completa 25 anos em 2017.

Com letras de António Lobo Antunes e arranjos e direcção musical de João Paulo Esteves da Silva (um dos pianistas agora aqui presentes), o disco foi à época maltratado na promoção porque não lhe encontraram refrões nem lhe anteviam interesse comercial. Um olhar distorcido, que não impediu que ele fosse reconhecido com um dos melhores discos desse ano (inclusive pelo PÚBLICO) e, posteriormente, já com a reavaliação que a distância permite, um dos grandes discos de sempre da música portuguesa.

Pois foi com ele que a noite começou, primeiro com o Tango do marido infiel numa pensão do Beato e depois com o Fado da prostituta da Rua de St. António da Glória. A voz de Vitorino não estava, de início, ainda na posse das suas inteiras faculdades, mas depressa arribou e isso foi notório quando chegou a Fado Triste e a Meu querido Corto Maltese.

Depois, uma estreia (haveria outras): Fado adeus, que Vitorino escreveu para Carminho e que ele cantou aqui (e bem) pela primeira vez. Seguiram-se Poema, de António José Forte (gravado em 1984), e Que amor não me engana, de José Afonso, homenageando os seus autores. Não só eles: também Adriano Correia de Oliveira (cujas qualidades ele enalteceu), cantando-lhe, com empenho, E alegre se fez triste, poema de Manuel Alegre com música de José Niza. E aqui entraram dois inéditos: um com música de João Paulo Esteves da Silva, Porta de Damasco; outro com música de Filipe Raposo, Traz água e vinho (Vitorino fez-lhe a vontade e trouxe, estavam na mesa, e de ambos se foi servindo nos intervalos do canto). Duas boas canções, a merecer registo num próximo disco.

Como de vinho se falou, dele se cantou: Estrela do vinho, poema do chinês Li Bai, escrito no século VIII d.C. e musicado por Janita Salomé (que o incluiu no seu muito recomendável disco Vinho dos Amantes, de 2007, também agora a completar dez anos). Seco o copo, Vitorino retirou-se para os bastidores com pretexto repositor (“vou buscar mais vinho lá dentro”), mas na verdade foi uma deixa para os dois pianistas brilharem sem a rivalidade cúmplice da voz.

Regressado o cantor, mais homenagens: Tomás Alcaide (tenor, nascido em Estremoz, ligado a partir de 1962 ao Teatro da Trindade), com O amor é cego e vê; Tony de Matos, com Vendaval; Joni Mitchell, com Answer me, my love; Jacques Brel, com La chanson des vieux amants; e, por fim, Carlos Gardel, com El dia que me quieras (parcialmente traduzido por António Lobo Antunes).

Por duas vezes, Vitorino fez o que raramente se vê fazer num espectáculo: repetir a parte final de canções depois de comentar: “Isto não foi bom.” Fê-lo depois de cantar Tomás Alcaide e Joni Mitchell, trazendo de algum modo para o palco o que devem ter sido os rigorosos ensaios com os pianistas. E reconhecendo que, na sua interpretação, ali nem tudo esteve como deveria. Mas, o que é mais espantoso, isso não só não quebrou o ritmo do espectáculo como lhe sublinhou a autenticidade. Até mesmo quando ele levou mais longe a blague (dizendo “tem sido um desastre, tal como eu esperava. Se não fossem eles, já me tinha ido embora”), isso foi encarado com bonomia pelo público.

Não estava a ser nenhum desastre, pelo contrário, estava até a correr bastante bem. Mas dizer o contrário, num jogo de nonsense, jogou surpreendentemente a seu favor: foram, ele e os dois pianistas (e este terá sido dos concertos realmente assumidos a três, ali não esteve um cantor com dois acompanhantes mas três músicos ligados entre si no palco), aplaudidos de pé, por duas vezes, e cada uma delas suscitou uma nova canção. Primeiro Vou-me embora, vou partir, popular alentejano que remonta ao seu disco de estreia, Semear Salsa ao Reguinho (1975); depois Queda do império, com parte da plateia a repetir, numa e noutra, um a um os versos.

Pela qualidade do trabalho investido nesta releitura de canções e tributos, bem como pelos originais ali estreados, pena será que deste espectáculo não saia um registo fonográfico. Já se sabe que os discos estão em crise, etecetera. Mas, sublinha-se, ainda há coisas que devem ser preservadas. E esta boa experiência a uma voz e dois pianos é uma delas. Pensem num disco, por favor.

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