Transexualidade é uma questão de "saúde sexual"

Pedro Nobre, presidente da Associação Mundial de Saúde Sexual, defende o direito das pessoas transgénero ao melhor apoio médico-psicológico possível na mudança de sexo. A organização reúne nesta sexta-feira no Porto.

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Pedro Nobre é psicólogo e professor associado com agregação na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, onde dirige o SexLab Adriano Miranda

O primeiro presidente português da Associação Mundial de Saúde Sexual (WAS), eleito em Maio, defende o reconhecimento da saúde sexual como um direito e o direito de todos a uma vida sexual satisfatória sem discriminação e coação. A comissão desta organização reúne-se, entre sexta-feira e domingo, no Porto, para definir a estratégia dos próximos quatro anos. Pedro Nobre é psicólogo e professor associado com agregação na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, onde dirige o SexLab.

É intenção do Governo, do BE e do PAN reconhecer o direito à autodeterminação de género. O que é que se pode fazer para garantir os direitos sexuais das pessoas transgénero?
Primeiro, deveria haver um consenso generalizado quanto a reconhecer e aceitar que há pessoas que nascem com um corpo com o qual não se identificam. Depois, é preciso reconhecer que isso causa sofrimento e que devem ser criadas todas as condições para o minimizar, para que essas pessoas possam ter uma vida “saudável”; um corpo com o qual se identifiquem e se sintam bem. Embora não conhecendo bem todos os pormenores da nova proposta de legislação, sei que existe uma certa animosidade entre uma parte da comunidade transgénero e uma parte dos profissionais de saúde, relativamente às condições de acesso ao processo de mudança de sexo, que era preferível que não existisse.

O que se pode fazer para combater essa animosidade?
O direito das pessoas transgénero a obterem o melhor apoio médico-psicológico neste processo de mudança é inalienável e o papel dos profissionais de saúde envolvidos é absolutamente crucial. Estes são os pressupostos básicos que deveriam nortear o diálogo entre as necessidades da comunidade transgénero e os profissionais de saúde.

Quais as medidas a implementar neste processo de mudança de sexo e como é que a WAS pode intervir nele?
A WAS pode, por exemplo, tomar uma posição pública, como fez recentemente, no sentido da despatologização e da criação de uma nova classificação internacional de doenças junto da Organização Mundial de Saúde (OMS). A disforia de género estava incluída como sendo uma perturbação mental. Ou seja, não no sentido de que as pessoas trangénero têm uma perturbação mental, mas sim no sentido em que têm um sofrimento psicológico, porque vivem num corpo que sentem como não sendo o seu. Como tal, têm direito a um apoio médico e psicológico no processo de mudança de sexo. A simples categorização no quadro das perturbações mentais tem sido, ao longo dos anos, interpretada como um sinal de patologização. A proposta da WAS é a mesma da OMS: é a de que as condições relacionadas com a transexualidade (que se passam a designar como incongruência de género) deixem de ser categorizadas como uma perturbação mental e passem a ser uma condição relacionada com a saúde sexual. Este processo de revisão do manual de classificação internacional de doenças da OMS está a decorrer. A WAS tomou uma posição pública, já sob a minha presidência, defendendo a mudança.

O que falta fazer em Portugal neste ponto?
Creio que, em termos legislativos, estamos a progredir no sentido positivo e temos criadas as condições para apoiar e não discriminar as pessoas transgénero. Já no capítulo do acesso aos cuidados de saúde, devem continuar a ser criadas as melhores condições para um acesso facilitado e célere ao processo de mudança de sexo. O que implica um trabalho multidisciplinar entre médicos e psicólogos que é, a meu ver, essencial e não deveria ser colocado em causa.

Qual deve ser o papel dos familiares neste processo e que tipo de conselhos lhes pode dar?
É extremamente difícil lidar com estas situações por causa do sofrimento causado e da dificuldade de acesso à ajuda. Os pais devem reconhecer que nem todos se identificam com o sexo com que nasceram. E que, apesar dos seus filhos serem diferentes da maioria, há outras pessoas como eles. Devem aceitá-los, incondicionalmente, e fazer todo o possível para os ajudar. Diria que, em termos do que é o apoio médico-psicológico e legislativo, devemos caminhar sempre no sentido de facilitar e ajudar não só as pessoas transgénero, como também as suas famílias.

Quais são os principais problemas que as pessoas transgénero enfrentam em Portugal?
Uma das queixas e polémicas actuais é a de que o apoio do Serviço Nacional de Saúde, aparentemente, não está a ser tão célere e eficaz como as pessoas gostariam. É fundamental criar condições para que haja um apoio eficaz e célere de ajuda, não só no processo de mudança de sexo, mas também no apoio psicológico que seja necessário, não só aos próprios, como também aos familiares.

Como não transformar a transexualidade num problema?
Primeiro, devemos aceitar e, a partir daí, promover a visibilidade social e a não discriminação, porque, infelizmente, ainda há muito trabalho a fazer ao nível cultural e social. A aceitação por parte dos pais torna-se mais fácil se existir o reconhecimento social generalizado de que todas as pessoas são diferentes nas suas manifestações e preferências sexuais (como no caso da orientação sexual) e também na identidade de género. A diversidade nestas matérias sempre foi a norma e não a excepção. E a história sempre o mostrou.

O que vai ao encontro do que a WAS defende?
A missão da WAS é trabalhar no sentido de defender o direito à saúde sexual e à autodeterminação em termos de preferências sexuais, de identidade de género e de tudo aquilo que tem a ver com a plena satisfação dos direitos sexuais desde que não sejam postas em causa as preferências e os direitos de terceiros.

A igualdade de saúde e de direitos sexuais para todos ainda é um problema em Portugal?
Sim, ainda há muito a fazer. Mas tem havido alterações legislativas muito significativas no sentido da não discriminação e do maior reconhecimento dos direitos sexuais.

O que falta fazer?
É preciso levar a discussão para o espaço mediático, para que quem nunca ouviu falar disto perceba que há pessoas que sofrem e que é preciso aceitá-las, porque nem todos somos iguais no que toca a experiências e preferências sexuais. É um trabalho interminável da WAS, que tem de ter relações fortes com organizações como a OMS e a ONU.

Como falar sobre abuso sexual com as crianças?
É importante saberem que existem adultos que infelizmente lhes podem fazer mal. Deve-se falar com com elas tal como se faz sobre as actuais ameaças de terrorismo e outras situações de ameaça grave. É um mito a ideia de que as protegemos se não falarmos sobre o tema. Isso deve ser feito o mais cedo possível, dependendo do estágio de desenvolvimento da criança, sabendo adequar a mensagem.

O que se pode fazer em relação aos abusadores sexuais de crianças?
Como psicólogo, e não necessariamente na condição de presidente da WAS, defendo que os abusadores sexuais devem ser ajudados. Ou seja, é importante usar estratégias punitivas, de criminalização, mas também ir além disso, como trabalhar no sentido de os ajudar a mudar comportamentos. Apesar de ser difícil, há investigações que mostram que é possível mudar e diminuir comportamentos de risco. O que não podemos fazer é enfiar a cabeça na areia e pensar que é possível um mundo livre de abusadores sexuais. Infelizmente, eles sempre existiram e sempre existirão.

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