Que futuro para as moedas digitais?

Poderão as moedas digitais vir a condenar as moedas dos Estados à irrelevância?

Yuval Harari, no seu livro Sapiens, argumenta que o mais importante factor que permitiu à espécie humana assumir o controlo do planeta, dominando completamente todas as outras espécies e toda a ecologia, foi a capacidade para criar ficções colectivas, conceitos que, uma vez partilhados por um número suficientemente grande de indivíduos, se tornam permanentes e duradouros, embora existam apenas na mente de cada um. Harari descreve como ficções partilhadas muitos conceitos e ideias que normalmente encaramos como indiscutíveis, de tão enraizados que estão no imaginário colectivo. Para Harari, conceitos como a religião, a vida após a morte, as nações ou mesmo os direitos humanos são apenas isso, ficções colectivas que, uma vez partilhadas por um número suficiente grande de indivíduos, se tornam em características imutáveis da sociedade humana.

De entre estas ficções colectivas, uma das mais curiosas é o dinheiro ou, para ser mais preciso, a moeda. Não existe valor intrínseco numa nota de 20 euros, ou numa nota de dólar, nem sequer numa moeda metálica de um euro. Em tempos, existiu uma relação entre a moeda emitida e uma certa quantidade de ouro mantido em reserva, mas essa equivalência desapareceu há muito tempo e, em todo o caso, o ouro também não tem nenhum valor intrínseco significativo, sendo, como metal, praticamente inútil. O valor da moeda resulta unicamente do facto de existir uma confiança partilhada de que esta pode ser usada, de uma forma generalizada, como uma unidade de conta, um meio eficaz para efectuar trocas comerciais e uma reserva de valor para o futuro. Estas três funções são exactamente as funções essenciais desempenhadas por qualquer moeda.

Uma moeda tem de ser uma forma de quantificar o valor de bens e serviços, uma unidade de conta aceite por todos. De outra forma, seria necessário saber, em qualquer altura, quantas ovelhas vale um carro, ou quantos quilos de arroz correspondem a uma viagem de avião. A existência de uma moeda, aceite por todos, permite que todos os valores sejam expressos numa unidade comum, o euro no nosso caso.

Para além de servir para quantificar o valor de um bem ou serviço, a moeda também serve para simplificar as trocas comerciais, servindo de intermediário, aceite por todos, para a troca de bens e serviços. De outra forma, teríamos de trocar directamente bens e serviços entre nós, fornecendo cada um de nós directamente aquilo que produz em troca daquilo que adquire. Sem moeda, se tivéssemos arroz para vender, e quiséssemos comprar um carro, teríamos de arranjar um vendedor de carros que precisasse de arroz (e em grande quantidade) para efectuar a troca. Nenhuma economia moderna poderia funcionar desta forma. A moeda é o mecanismo que permite que as transacções se realizem, de forma rápida e eficiente.

Finalmente, a moeda também tem de poder servir como uma forma de preservar valor para o futuro. Tem de existir uma confiança, partilhada, de que uma dada moeda valerá, no futuro, mais ou menos o mesmo que vale agora. Quando esta confiança se esbate (por exemplo, quando existe forte inflação), a moeda deixa de poder desempenhar o seu papel.

No caso das moedas emitidas pelos bancos centrais, existe uma garantia, dada por estes, de que existe um suprimento limitado (até certo ponto), o que confere a estas moedas uma relativa raridade, garantindo assim o seu valor como unidade de troca. Para além disso, os Estados soberanos garantem também que actuarão, usando a força, se necessário, para impedir a criação de cópias não autorizadas das moedas em circulação. Este controlo centralizado da quantidade de moeda em circulação permite criar a confiança necessária para que as moedas emitidas pelos Estados soberanos desempenhem as três funções acima referidas.

Até agora, estas garantias só podiam existir nos casos em que existia uma autoridade centralizada, suficientemente poderosa para garantir simultaneamente que a duplicação não autorizada de moeda não tem lugar e que a quantidade total de moeda em circulação é limitada. Os bancos centrais, em ligação directa com o sistema bancário, mantêm registos centralizados e controlam a quantidade de moeda em circulação, tanto na sua componente física (moedas e notas) como na sua componente desmaterializada (registos dos valores em contas bancárias). Estes registos, que agora são, na sua quase totalidade, completamente electrónicos, são cuidadosamente controlados pelos governos e bancos centrais, assim como as impressoras e máquinas de cunhagem que permitem produzir moeda física.

Porém, as inovações tecnológicas vieram a criar a possibilidade de obter estas garantias usando algoritmos e programas de computador, de uma forma inteiramente distribuída e que não depende da intervenção de uma autoridade central. Se um número suficiente de indivíduos partilhar um sistema de registo distribuído, que não possa ser corrompido e que registe de forma indiscutível quem é o dono de uma dada unidade de moeda, é possível criar moeda cujo valor não depende da existência de bancos centrais, nem de Estados soberanos. Até há poucos anos, a tecnologia necessária para construir um sistema destes não existia ou, pelo menos, não tinha sido colocada em prática.

Porém, em 2009, um indivíduo (ou grupo de indivíduos) identificado unicamente pelo pseudónimo Satoshi Nakamoto colocou no domínio público código de computador que permite, a qualquer pessoa com um computador, partilhar um registo distribuído que, pelas suas características matemáticas, não é passível de ser corrompido, e pode ser usado para registar, de forma transparente e auditável, quais as transacções de uma dada moeda digital (denominada bitcoin) que tiveram lugar. Este sistema permite que qualquer pessoa verifique, em qualquer instante, quem é o dono de um dado bitcoin. Sofisticados mecanismos de cifra garantem que nenhum indivíduo, ou grupo de indivíduos, conseguirá corromper o registo partilhado e disso tirar proveito. No caso do bitcoin, estes mecanismos são conhecidos como blockchain, uma tecnologia que também tem muitas outras aplicações noutras áreas. O sistema tem ainda embebido um mecanismo de geração de novas unidades desta moeda, que garante que estas novas unidades são geradas a um dado ritmo, cada vez mais lento, garantindo assim a preservação do valor deste moeda através do tempo.

Com o passar dos anos, cada vez mais pessoas e organizações vieram a adoptar esta nova moeda como unidade de troca, criando assim uma comunidade cada vez maior que partilha esta ficção particular, desta forma aumentando o seu valor global. No momento em que escrevo, cada bitcoin vale um pouco mais de 5000 dólares e o total de bitcoins em circulação tem um valor total de mais de 85 mil milhões de dólares (quase metade do Produto Interno Bruto de Portugal). Outras propostas vieram a juntar-se ao bitcoin, e existem neste momento mais de 30 moedas digitais diferentes, que usam diferentes algoritmos de cifra para garantir as propriedades que são essenciais para o funcionamento de uma moeda.

Qual será o futuro destas moedas digitais? Serão uma moda passageira, e virão a desaparecer com o tempo, à medida que se for verificando que nunca substituirão as moedas dos Estados e nunca sairão dos seus nichos de aplicação? Virão a crescer, podendo eventualmente substituir o dólar e o euro como moedas globais, dando garantias matemáticas de sustentabilidade e inviolabilidade contra as quais nenhum governo ou banco central poderá competir, podendo mesmo vir a condenar as moedas dos Estados à irrelevância? Ou manter-se-ão no seu nicho, como uma pouco popular alternativa às moedas dos Estados, com as quais irão conviver durante muitas décadas? Só o tempo o dirá.

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