Springsteen on Broadway é o Boss em palco como nunca o vimos

Após a estreia oficial, esta quinta-feira, da temporada de concertos que cumprirá na Broadway, a imprensa elogia sem freios "um testemunho maior sobre o trabalho de uma vida, mas também uma grande revisão dele".

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Springsteen e Patti Scialfa à saída do Walter Kerr Theater na última quinta-feira, data da estreia oficial da temporada de concertos na Broadway Reuters/EDUARDO MUNOZ

Que Springsteen on Broadway, a série de concertos iniciada a 3 de Outubro no Walter Kerr Theatre, em Nova Iorque, e que se prolongará até 3 de Fevereiro, tenha batido recordes de bilheteira na primeira semana de palco não é surpreendente. Afinal, falamos de Bruce Springsteen e da irresistível possibilidade de o ver, num espaço intimista, a solo (ou quase, que Patty Scialfa, membro da E Street Band e sua mulher, canta com ele um par de canções), a passar em revista quatro décadas e meia de carreira. Mais surpreendente será a forma como se apresenta e o impacto que o concerto tem tido nas 944 pessoas que lotam diariamente o teatro da Broadway.

Primeiro, os números. Na sua primeira semana, Springsteen on Broadway gerou uma receita de cerca de 2,3 milhões de dólares (cerca de 1,95 milhões de euros), o que faz dele o terceiro espectáculo mais lucrativo em cena na Broadway, atrás de Hamilton e Hello Dolly!. Ressalve-se, porém, que Springsteen sobe ao palco cinco vezes por semana – contra os sete dias dos restantes espectáculos –, e que o Walter Kerr Theater é significativamente mais pequeno do que aqueles em que se assiste a Hamilton (1.300 espectadores) e Hello, Dolly! (1.460 espectadores).

Os números são, porém, mera curiosidade que atesta a popularidade e a dimensão cultural de Springsteen. O que cativou e centrou atenções, a julgar pelos relatos no New York Times, no Guardian ou na Rolling Stone e pelo consenso crítico gerado após a estreia oficial, esta quinta-feira, tem sido a forma como o espectáculo surge como biografia musicada e testamento artístico do autor de The River, ele que, perante o silêncio reverente com que o público o encara canção após canção, se apresenta como uma “fraude” – “caso ainda não tenham reparado”, acrescenta. “Nunca cumpri um dia honesto de trabalho. Nunca trabalhei das nove às cinco, nunca fiz trabalho pesado. E, ainda assim, é só sobre isso que canto. Tornei-me incrivelmente, absurdamente bem-sucedido a escrever sobre uma coisa da qual não sei nada”, cita-o o Guardian. É também uma "fraude", escreve o New York Times, citando-o igualmente, por ser o rebelde que partiu América fora, ganhou milhões, mas que, na verdade, ainda vive a dez minutos da casa em que cresceu.

O espectáculo surge depois de Born to Run, a biografia que publicou no final de 2016, e parece ser o resultado desse mergulho na sua história de vida e do reencontro com as suas memórias. Ao piano, guitarra acústica e harmónica, Springsteen intercala a interpretação de canções, não necessariamente as mais célebres, ainda que estas também surjam, mas em versões que as mostram sobre nova luz – Born in the USA, por exemplo, revela-se com a força das palavras a tomar o lugar do poder da banda, “a canção de protesto” que Springsteen sempre disse que era –, com o relato dos episódios que as fizeram nascer, reflexões sobre a sua vida e adaptações livres de passagens da autobiografia. "Springsteen on Broadway, ainda que entusiasmante, é um doloroso balanço aos 68 [anos de idade]: um testemunho maior sobre o trabalho de uma vida, mas também uma grande revisão dele”.

Ao longo de duas horas, ouvem-se Growing up, My hometown, The rising, Long walk home. Aplaude-se a chegada de Patti Scialfa para juntar a sua voz a Brilliant disguise e Tougher than the rest, e ouvem-se também, obviamente, alguns dos clássicos mais clássicos, digamos assim. Como o supracitado Born in the USA, como Dancing in the dark. Quando esta última canção se anuncia, relata a imprensa, o público abandona a sua pose reverente e começa a libertar-se como num concerto da E Street Band. Ouve-se ruído e palmas a marcar o ritmo. Bruce Springsteen interrompe a canção. “Eu faço isto sozinho”, diz com um sorriso.

Naquele palco despido de adereços, relata-se nas páginas escritas no outro lado do Atlântico, não se desenrola um habitual espectáculo da Broadway e não se vê o concerto de Springsteen a que estamos habituados. Vê-se um homem a relatar a sua vida e os seus falhanços, despido perante o público, sem máscaras, enquanto reavalia e recontextualiza a sua música. É essa a grande novidade do concerto. Os recordes de bilheteira? Nada de mais. São “business as usual” para Springsteen.

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