Proletários de todo o mundo: vemo-nos no aeroporto!

A tragicomédia da vida pós-11 de Setembro, tal como a paranóia securitária, o turismo low-cost e nossa necessidade de consolo (ou seja, de um telemóvel na mão) a reconfiguraram: o Teatro de Ferro abre o FIMP com Marionetas tradicionais num país que não existe.

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Marionetas tradicionais de um país que não existe ocupa o claustro do Mosteiro de São Bento da Vitória até ao último dia do festival Adriano Miranda
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Marionetas tradicionais de um país que não existe ocupa o claustro do Mosteiro de São Bento da Vitória até ao último dia do festival Adriano Miranda

Mãos no ar, braços e pernas abertos, bolsos vazios, sapatos e botas a um canto, separados de todos os seus pertences, absolutamente desarmados, absolutamente rendidos, milhões de seres humanos atravessam diariamente os pórticos de segurança de infinitos aeroportos espalhados pelo mundo e chamam a isso férias – será o preço a pagar por se terem tornado tão baratas, mas ainda é cedo para falarmos de capitalismo, e do momento em que vimos o futuro da linha de montagem que in illo tempore proletarizou a maioria silenciosa no novo tapete rolante do controlo de bagagens onde somos todos proletários. Cedo porque há várias outras histórias, mais antigas (mas não ao ponto de se terem tornado obsoletas), neste terminal de aeroporto em que o Teatro de Ferro quis encenar a tragicomédia da vida pós-11 de Setembro para abrir a matar, camuflados do Exército francês e guerrilheiras curdas incluídas, mais uma edição do Festival Internacional de Marionetas do Porto (FIMP).

Histórias antigas como a de (apesar de todas as fantasias independentistas, algumas das quais terroristas) nunca termos deixado de ser corpos para vigiar e punir, por exemplo – mas agora chamarmos a isso férias. Ou como a nossa eterna necessidade de consolo, sobretudo numa sala de espera de aeroporto, que felizmente (tempos modernos!) qualquer telemóvel pode saciar – dando várias vidas extra às mesmas mãos que noutros tempos, mais primitivos, inventaram, provavelmente para satisfazer a mesma necessidade, o teatro de fantoches. Talvez sejam demasiadas discussões para ter nos 60 minutos que dura Marionetas tradicionais de um país que não existe, o espectáculo com Diogo Martins, Dóris Marcos, Filipe Moreira, Gisela Matos e os alunos do segundo ano do Balleteatro que a partir desta sexta-feira, e até ao último dia do festival, 29 de Outubro, fará do claustro do Mosteiro de São Bento da Vitória uma câmara de eco das inquietações e das perplexidades, mas também dos desejos e das epifanias, de Igor Gandra, que acumula a direcção artística do Teatro de Ferro e do FIMP e aqui quis cruzar o passado e o presente não só da humanidade como da própria marioneta.

Apesar da espiral de dispersão a que este prolixo programa alimentou, Igor Gandra ainda não perdeu de vista como é que tudo isto começou e tem uma ideia de como é que gostaria que (não) acabasse (“Não é um espectáculo de tese, não fazia sentido trazer um grande lance teórico para aqui”). Recapitulando: “Há muitos anos, vi uma peça do Peter Waschinsky [n. Berlim-Leste, 1950], Cabaret Berlinn, de que gostei muito (e que aliás programei no último FIMP) – é uma peça muito curiosa porque se por um lado ele recorre à fortíssima tradição marionetística da Europa de Leste, por outro tudo ali é muito pessoal. Saí de lá a pensar, e é uma ideia que dá mesmo muito que pensar: isto são marionetas tradicionais de um país que não existe.”

Entretanto, houve um outro espectáculo, Olo – Um solo sem s (2014), em que Igor Gandra também desenterrava coisas do chão (“É uma obsessão minha”) e engendrava um homenzinho que agora vê como o antepassado das criaturas brancas que nascem (e depois se reproduzem desenfreadamente) a partir das luvas brancas dos controladores de bagagem deste aeroporto imaginário, também aqui recorrendo a uma fortíssima tradição marionetística, a do fantoche (ou marioneta de luva). Foram três anos a escrever, a desenhar, a esculpir; a pensar sobre o que é um país, e em particular um país que não existe (nunca existiu, como a Terra do Nunca de Peter Pan ou o País das Maravilhas de Alice, deixou de existir, como a República Democrática Alemã em que nasceu Peter Waschinsky, ou ainda tem de ser inventado, como o Curdistão das guerrilheiras do PKK?) e a coleccionar curiosidades sobre aeroportos (como: por ano, a brigada de minas e armadilhas da polícia de Paris é chamada 2200 vezes para inspecionar bagagens esquecidas nos aeroportos Charles de Gaulle e de Orly), uma vez assente que “este espaço de identidade não demasiado definida onde passamos cada vez mais tempo era um bom ponto de partida”.

Foto
Adriano Miranda

Passageiros, prisioneiros, proletários

Invadidas de turistas (o mundo pós-11 de Setembro também é o mundo pós-low-cost) e de terroristas (pelo menos nos nossos piores pesadelos colectivos), as cidades parecem-se cada vez mais com aeroportos e os aeroportos parecem-se cada vez mais com cidades, escreve o encenador no programa do espectáculo: “as mesmas lojas, as mesmas lógicas, a mesma relação entre vigilância e hedonismo de baixo custo”. Com a agravante, às vezes anedótica, de o aeroporto se ter transformado no lugar em que solicitamente nos transformamos em “culpados de um crime monstruoso – embora genérico e até um pouco vago”: “Nos aeroportos há uma suspensão pelo menos temporária do Estado de direito – ninguém tem direito à presunção da inocência, somos todos culpados até prova em contrário, e é sobre nós que recai o ónus da prova”, diz ao Ípsilon.

Em Marionetas tradicionais de um país que não existe, a visão mais ou menos absurda dessa rendição esmagadoramente ordeira à paranóia securitária, ou seja da transformação dos passageiros em prisioneiros (a revista individual, a intimidade violada de cada vez que uma mala é escancarada diante da multidão…) dá lugar a uma comédia chaplinesca, reforçada pelo barbarismo do inglês monossilábico (às vezes nem isso) de aeroporto e pela sua indistinta paisagem sonora de avisos incompreensíveis. “O dispositivo do controlo de bagagens serve para nos lembrar a toda a hora que somos proletários – é uma autêntica linha de montagem em que fazemos uma figura muito parecida com a do Chaplin dos Tempos Modernos. É como se nos dissessem: ‘vais viajar e fruir do mundo, mas entretanto passas aqui pela fábrica para não te esqueceres de qual é o teu lugar’. Depois, claro, os procedimentos são completamente arbitrários – e essa aleatoriedade é uma matéria maravilhosa para se trabalhar”, aponta Igor Gandra. O caso é tão sério, acrescenta, que “só mesmo as marionetas” podem pôr o dedo na ferida sem que doa demasiado: “A ideia de que decidimos para onde vamos e o que fazemos torna-se muito relativa nestes contextos: como no teatro de marionetas, é difícil perceber quem manipula quem. Através da animação da matéria tentámos sondar estes lugares em que o divertimento se cruza com questões de vida ou morte e que são muito o espírito do nosso tempo.”

Mas da comédia chaplinesca deste novo proletariado do turismo global à apoteose industrial da grande máquina em eterna reconversão, da visão distópica de uma sociedade rigorosamente vigiada à poesia possível da nossa dependência tecnológica figurada naquelas salas de espera onde nos escondemos atrás de ecrãs de telemóvel – “o objecto mais icónico do nosso tempo, mais próximo do que o revólver do Velho Oeste: de dia está sempre no bolso, à noite dorme connosco…” –, Marionetas tradicionais de um país que não existe evolui como um “desses sonhos acordados que nascem do tédio construtivo das esperas em aeroportos”. Algures a meio de um desses sonhos, talvez saia dos altifalantes um aviso sonoro que soaria estranho se o que vimos nos últimos tempos e o que ainda estamos para ver não se tivessem encarregado de o tornar tudo menos estranho: “Senhor passageiro, lamentamos informar que o nosso destino já não existe.”

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