O um-do-li-tá do cinema do futuro

A Festa do Cinema Francês exibe este sábado, em Lisboa, um documentário notável sobre o processo de admissão de candidatos a cineastas à escola parisiense Fémis: Le Concours.

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Le Concours, de Claire Simon Andolfi

Só mesmo França, o país da “excepção cultural”, para permitir acompanhar com o máximo de transparência possível todo o processo de candidatura de entrada na mais prestigiada escola superior de cinema parisiense. A Fémis foi fundada em 1986 e o seu corpo de ensino é inteiramente composto por cineastas e técnicos profissionais com vista a passar às próximas gerações os seus conhecimentos. Le Concours, um extraordinário documentário da cineasta Claire Simon que é exibido este sábado no programa de Lisboa da Festa do Cinema Francês (Cinema São Jorge, 21h30, em presença da realizadora), acompanha esse processo, desde o primeiro exame de triagem (uma prova escrita de três horas consistindo na análise de excertos de filmes) até às escolhas finais do júri, à medida que centenas de candidatos vão sendo eliminados, um a um, depois de longas entrevistas, provas práticas e orais e deliberações.

No concurso de admissão acompanhado por Simon (que já ensinou na Fémis e foi Herói Independente no IndieLisboa em 2014), apenas 60 alunos foram aceites entre um milhar de candidatos.

Le Concours não é, atenção, um filme sobre esses candidatos a cineastas, nem sobre os jurados que os escolhem (embora, evidentemente, também o seja). É, sim, um filme sobre o processo que leva a aceitar esta candidata e não a outra, sobre as variáveis intangíveis que entram em jogo a cada momento – e o que se demonstra ao longo destas duas horas é que esse processo é impossível de ser reduzido a uma fórmula, matemática ou resolvente. Não é bem o “um-do-li-tá” das brincadeiras do recreio da escola, mas andará assim tão longe disso?

A certa altura, duas juradas do concurso de guionismo, meio a brincar, dizem que “a Sylvie vai ficar toda contente se escolhermos um árabe, um negro, uma asiática...” Outros jurados questionam se, afinal, “estamos à procura de alguém que se encaixe numa certa ideia de cinema, ou queremos descobrir talentos em bruto que esta escola vai permitir fazer desabrochar?” Não há correcção política que sobreviva à franqueza de Le Concours, e isso é deliberado da parte de Simon, veterana documentarista que tem mostrado especial interesse pelos espaços e pelas estruturas sociais. 

Essas questões politicamente incorrectas – de quotas raciais ou económicas; de equilíbrios que transcendem a mera competência técnica e o mero conhecimento teórico para entrarem em questões de personalidades, de rasgos, de gestos – são absolutamente inescapáveis porque questionam o próprio acto de ensinar e educar. E esse acto não se pode submeter exclusivamente a quotas ou preferências; uma turma pode ser uma tela em branco, mas não é um objecto estéril e anónimo, é um colectivo de indivíduos muito diferentes entre si.

Le Concours é um instantâneo que merece ser visto por quem se preocupa com o futuro – da arte, do ensino e do ensino da arte.

 

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