O género e o sexo em sentido extra-moral

As controvérsias, as hostilidades e o culto provocados por este livro que conquistou um lugar central nos “estudos de género” permanecem activos e fizeram de Judith Butler uma eminente figura do nosso tempo.

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Depois de Problemas de Género nada, neste domínio, ficou como dantes MIGUEL MANSO

Este livro, publicado em 1990 nos Estados Unidos, quando a sua autora era ainda uma jovem filósofa no início de carreira, provocou um efeito poderoso, ainda hoje bem activo, numa área que não é possível definir com precisão porque nela se cruzam várias disciplinas. Gender Trouble. Feminism and the Subversion of Identity, título original do livro, conquistou um lugar central nos gender studies, os estudos de género. Fora do âmbito gramatical, a noção de género era utilizada desde os anos 60, nos Estados Unidos, em Sociologia e em Antropologia. Não foi, portanto, Judith Butler que a inventou, mas foi ela que veio introduzir problemas, perturbar a estabilidade dessa categoria analítica, abrindo assim o caminho a novas problemáticas, no que diz respeito à dualidade sexo-género. Este livro tornou-se então um dos textos fundadores da queer theory, assim baptizada por Teresa de Lauretis também no início dos anos 90. E falta ainda mencionar um outro efeito de Gender Trouble: Judith Butler usa os instrumentos da descontrução e da French Theory (que, como sabemos, é uma construção americana da filosofia francesa pós-estruturalista) para criticar o pensamento feminista, tal como ele tinha sido elaborado desde Simone de Beauvoir, e propor uma filosofia e uma política feministas que subvertem a própria ideia de identidade feminina. A sua crítica do feminismo, sempre feita a partir do interior dele, não se confunde de nenhum modo com aquilo a que se chamou pós-feminismo.

O título da tradução portuguesa, Problemas de Género, não consegue restituir fielmente o sentido do título original. Não se trata de incompetência de Nuno Quintas, o tradutor (que seria certamente confirmada no interior do livro, o que não é o caso), mas da impossibilidade de encontrar uma tradução plenamente satisfatória para Gender Trouble. É um problema que os tradutores de outras línguas também sentiram, como é possível deduzir dos títulos díspares, pouco coincidentes, que o livro tem nas principais línguas europeias (em italiano, há mesmo duas traduções com dois títulos diferentes). O trouble do género, os “problemas” que se manifestam no seu interior (e não os problemas que ele provoca exteriormente, como um leitor desprevenido poderia pensar), nascem a partir do momento em que há necessariamente um choque entre o género e o sexo, já que a sexualidade — e esta é uma tese fundamental de Butler — é separável do género, de modo que pertencer a um determinado género não implica necessariamente ter um determinado comportamento sexual. Mais do que isso: o género não é dotado de nenhuma essencialidade, é algo que resulta de um agir e, por isso, é sempre instável.

Ora, é precisamente pela sua teoria do género e pelo modo como pensa a relação entre género e sexo que Judith Butler se tornou quase a inimiga número 1 das boas consciências de todo o mundo que não querem ouvir falar de género, e quando ouvem falar dizem que é uma “ideologia” diabólica da qual é preciso proteger as crianças e afastar as pessoas “normais”; ou então, no melhor dos casos, quando aceitam falar de género não vão além de uma oposição entre sexo e género segundo o modelo da oposição entre natureza e cultura, o que significa necessariamente basear a construção social numa identidade biológica.

O género, diz Butler, resulta das práticas do corpo, da sua estilização, é uma sequência de actos iterativos, isto é, que se repetem. O género é um fazer, uma incessante actividade em desenvolvimento, em parte de maneira inconsciente. Trata-se de um papel que se desempenha num palco onde imperam regras bem precisas, as regras heteronormativas, conservadoras e patriarcais que impendem sobre nós e que nos dizem o que é preciso fazer para ser um homem ou uma mulher. Alguns adoram essas normas e até as encarnam com paixão; outros rejeitam-nas. Mas a heteronormatividade nunca funciona como uma máquina perfeita. E quem julga que ela pode funcionar perfeitamente e estabelece essa “perfeição” como critério da “normalidade” acaba por, involuntariamente, dar a ver a heterossexualidade como uma comédia, senão mesmo como um “doloroso problema” (esta expressão vem de outro lado, não é de Judith Butler, mas podemos muito bem pensar que ela a subscreveria). O género, diz ainda Butler, não é uma essência que se revele nas nossas práticas; pelo contrário, são as nossas práticas do corpo, em regime de repetição, que instituem o género. O género é assim desnaturalizado e, embora resultado de uma acção, ele está para além da consciência e da intenção dos sujeitos implicados na acção. Na medida em que, segundo Butler, não há nenhuma identidade de género que não seja o efeito de um agir, o género é performativo e não se adequa às normas do binarismo.

A questão da performatividade do género, tal como Judith Butler a desenvolve, vai buscar as suas fontes à teoria dos actos de fala, do filósofo John L. Austin (autor do célebre How to Do Things with Words). Dizer que o género é performativo significa concebê-lo não como uma essência interior, não como uma evidência concedida pela natureza, mas como algo que é construído e a que o nosso corpo se adequa. Não existe identidade de género que não seja constituída pela e na linguagem. E é precisamente por ser um fazer que o género pode ser desconstruído. No projecto desconstrucionista de Judith Butler, a performance da drag queen e do drag king  assumem um papel central: ao imitarem o género o/a drag  revela implicitamente a estrutura imitativa do próprio género. O género mostra-se assim, com toda a evidência, como um estilo corporal,  uma estratégia cultural, uma simulação. E é extremamente significativo que o protótipo do género, o/a drag, seja uma paródia.

No entanto, é preciso ver esta paródia com algumas precauções. Judith Butler nunca defendeu que a teoria queer se devia reduzir a uma estética, onde cada um poderia inventar-se a si próprio, num jogo — ou num espectáculo — de papéis a desempenhar. O género não se reduz a um performance teatral. E Butler explica, usando uma cómica analogia (num outro livro posterior, Bodies that Matter) que não se trata de “levantar-se de manhã e retirar do armário um género à escolha, vesti-lo para a jornada e, à noite, ao regressar, tornar a colocá-lo no lugar”. Uma tal liberdade supõe um sujeito dado a priori. Ora, é precisamente isso que Butler recusa, na sua análise da construção do sujeito pelas normas sexuais. E ainda nesse mesmo livro, passando em revista alguns equívocos que Problemas de Género suscitou, a filósofa adverte que nunca teve a intenção de propor uma proliferação de performances de travesti, com o objctivo de subverter as normas dominantes de género. Simplesmente, “queria sublinhar que não há uma ligação necessária entre travesti e subversão, e que o travesti pode muito bem estar ao serviço da desnaturalização e, simultaneamente, da reidealização de normas de género hiperbolicamente heterossexuais”.  Já em1990, no livro agora traduzido, Butler dizia que “em si, a paródia não é subversiva”.

A questão que geralmente é colocada pelos detractores de Butler  é a seguinte: e o corpo biológico, a materialidade do corpo, o que é feito dele face a um tal construcionismo? Judit Butler nunca disse que o sexo biológico não existe, que é uma ficção, uma mentira, uma ilusão. Simplesmente, não temos nem podemos ter uma relação simples e transparente com o sexo biológico. Desde logo porque, para a sua definição, temos de passar por um quadro discursivo, e é esse processo que interessa à teoria do género. Não se trata de dizer que é tudo linguagem, negando a realidade do corpo, mas de dizer que também a anatomia tem uma história e não é separável de uma ordem do discurso. Neste sentido, também o sexo resulta, tal como o género, de uma construção. Sem negar a realidade material do corpo (ou seja, a natureza), Butler vê também no corpo o efeito das regras sociais, das contingências normativas e das relações de poder.

Como se pode perceber, ao definir o género na sua instabilidade e no seu carácter performativo (ao ponto de vir defender, num outro livro, que é preciso “desfazer o género” e não acomodar-se a ele), Butler entra em choque com o pensamento feminista que seguiu a via da essencialização do masculino e do feminino e baseou toda a sua acção política num conceito fixo de género, sem jamais ter em conta a dimensão performativa. Beauvoir dizia que não se nasce mulher, devem-se mulher. Para Butler, quer se nasça mulher ou não, ninguém se torna completamente mulher. Mas a sua crítica ao pensamento feminista, desde o seu nascimento aos nossos dias, visa também o pressuposto da heterossexualidade, a submissão à regra da heterossexualidade obrigatória. O feminismo atravessou ingenuamente os “problemas de género”, sem procurar desconstruir o binarismo e criticar as fixações essencialistas. Mas depois de Problemas de Género nada, neste domínio, ficou como dantes. 

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