Eleições, referendos e mixórdias

Devia haver uma lei que indexasse o ordenado máximo na empresa ao ordenado mínimo na empresa. Talvez assim houvesse menos desigualdade.

Haja paciência. Houve eleições autárquicas em Portugal, referendo para a independência da Catalunha e o “Brexit” continua qual novela de segunda categoria. O Governo Polaco tenta tomar de assalto os Tribunais e o Governo português, aparentemente, pediu ajuda à Comissão Europeia para averiguar da eventual violação do Direito da Concorrência no setor dos combustíveis em Portugal. Por todo o mundo cada vez se fala mais de desigualdade e em Portugal, qual terceiro mundo, o fosso entre os mais ricos e os mais pobres não para de crescer.

Já não há paciência para os mesmos comentários, para as mesmas críticas, para as mesmas soluções de algibeira, para os críticos e comentadores do costume, para as eminências pardas do país e do estrangeiro. Por isso o texto de hoje vai ser uma mixórdia, um desabafo.

Nas eleições autárquicas confirma-se, para já, uma evidência: a abstenção é enorme, mas um pouco menos que o costume. Pela simples razão que os eleitores não estão nem aí. Não querem saber da coisa pública, segundo se diz. Parece que a culpa do restaurante estar às moscas não é do dono, do pessoal, da cozinha, da localização. É dos clientes que não aparecem; porque esse é o seu dever e eles não o cumprem. Este é, a meu ver, o primeiro e maior problema da nossa (e não só) classe política: a culpa do alheamento do eleitor não é responsabilidade do dono do restaurante mas do cliente. Anedótico se não fosse dramático. A solução, a meu ver, passaria por uma alteração do sistema eleitoral representativo: se X eleitores elegem Y representantes, a qualquer nível e numas quaisquer eleições, apenas meio X votam, então apenas meio Y será eleito. Talvez assim a partidocracia aprendesse que na política, como nos restaurantes, sem qualidade de serviço não há clientes e sem clientes não há negócio. Em todo caso, aos eleitos, parabéns. Tenho a certeza que nenhum me vai desiludir. Porque a certeza que podemos ter é de mais do mesmo.

Ao mesmo tempo na Catalunha realiza-se um referendo. Ilegal e inconstitucional, dizem. É proibido pela lei e pela Constituição do Reino, dizem. Viola, por isso, um princípio fundamental de Direito que é o princípio do estado de Direito, dizem e com alguma razão, pois o princípio do estado de Direito implica a subordinação do Estado ao Direito e por si só, não conforma nem valora o Direito a que o Estado se vincula. O princípio do estado de Direito proíbe o referendo na Catalunha, se o Direito Espanhol assim o determina e, nesse caso, a carga e violência policial vimos em direto no dia 1 de outubro está por ele, princípio do estado de Direito, justificada. O mesmo aconteceu quando, em 1940, Lluís Companys i Jover, independentista catalão, foi preso, julgado e executado pelo estado espanhol, com o auxílio da Gestapo. Pablo Casado teria, neste cenário razão quando recorda a Carles Puigdemont que o seu destino poderá ser semelhante (talvez sem a execução…).

O conteúdo do Direito a que o Estado obedece deve ser avaliado em função de outros valores, aqueles que determinam a filosofia determinante daquela Comunidade. Poderá ser a separação de poderes, a democracia, os direitos fundamentais, a liberdade de expressão… mas pode ser também a mãe pátria, a caridade, a nação, a pureza da raça, o Império. O Estado de Direito, em si, é neutro. Se Hitler cumpria o Direito alemão vigente, a Alemanha nazi era um Estado de Direito.

Sucede que em Espanha o princípio do estado de direito não é neutro, pela simples razão de que a Constituição espanhola afirma, no seu artigo primeiro, o princípio do estado social e democrático de Direito – a meu ver, exigindo que o Direito (espanhol) seja social e democraticamente legitimado para se impor de forma generalizada. Não creio que a proibição do exercício do direito de voto, para mais com recurso à violência contra os cidadãos, por parte de forças policiais do poder central, seja uma atitude conforme ao princípio democrático ou, mais ainda, conforme ao princípio de estado social e democrático de Direito inscrito na Constituição espanhola.

A tragicomédia do “Brexit” soma e segue. Assinalável é que agora parece haver dois tipos de votantes no Reino Unido: os “Remainers”, ou seja, os que votaram para ficar, e os “Brexiters”, que mais parecem “Remoaners”, no sentido que votaram para sair, ganharam, e reclamam contra a falta de vontade da UE para os deixar ficar com o bolo e comê-lo. Acordem! Votaram para sair e sair significa sair; a democracia é assim mesmo – a porta da rua é a serventia da casa. Aos que querem ficar, esperemos que a UE seja capaz de reconhecer a sua cidadania, reconhecendo-lhes os direitos que, por adesão ou nascimento, lhes pertencem de pleno direito.

O Governo português, aparentemente, pediu à Comissão Europeia que investigue o mercado nacional de combustíveis. Pergunto-me para que serve a Autoridade da Concorrência da República Portuguesa… Que algo está errado no mercado dos combustíveis em Portugal em sede de concorrência é uma evidência plasmada nos placards dos preços de combustível das auto-estradas nacionais. Anedótico de rir até às lágrimas de triste que é. Práticas concertadas ou abuso de posição dominante, uma investigação isenta, independente e competente que tarda mais de 30 anos, diria. Por que razão o Governo considera necessário chamar a Comissão Europeia para o efeito é, no mínimo, estranho. Ou não. Pena é que não exista ainda um quadro legislativo claro e eficaz para Class actions para efetivação da responsabilidade por danos sofridos pelos consumidores em consequência de ilícitos jusconcorrenciais.

Há uma verdade absoluta em concorrência: quando, em qualquer das fases da cadeia de produção ou distribuição, existe uma posição dominante, o abuso do poder de mercado aparece inevitavelmente e os preços tornam-se necessariamente abusivos. Estas situações abundam em Portugal, criadas pelos sucessivos Governos que entregaram infra-estruturas essenciais a operadores, dando-lhes o poder de ditar a sua vontade, quase como que concedendo-lhes o poder de cobrar “impostos”, em autênticos “crimes” contra a economia de mercado, o bem-estar social, as empresas, famílias e pessoas.

Finalmente as desigualdades. Estou cansado de ouvir queixas e lamentos inconsequentes contra o aumento das desigualdades. A evidência deste aumento é brutal. Como é brutal a ausência de ideias para a combater e repor a justiça social. Pelo meu lado, há anos tenho propostas nesse sentido, apresentadas em foro académico. Mas talvez este foro mais geral seja mais útil.

A desigualdade combate-se, com evidentes resultados reduzidos, através de políticas fiscais e políticas laborais. Nas últimas, releva o estabelecimento de salários mínimos nacionais que, do meu ponto de vista, nada conseguem na redução das desigualdades. Mais ou menos cinquenta euros por mês pouco ou nada faz na diminuição da desigualdade social. Em termos salariais a única medida que faria a diferença seria uma espécie de salário máximo relativo por empresa. Expliquemos.

Temos no país empresas em que o leque salarial varia, não entre os proverbiais 8 e 80, mas entre os 8 e os 80.000. Será que a contribuição do CEO da empresa para o desempenho é 100 vezes (ou mais) superior ao dos seus trabalhadores com os salários mais baixos? Não tenho nada contra vencimentos de dezenas, centenas ou até milhares de milhares de euros por mês. Mas acho imoral que o CA de uma empresa estabeleça o seu vencimento mensal em valores correspondentes ao vencimento de anos e anos dos seus colegas mais mal pagos. Devia haver uma lei que indexasse o ordenado máximo na empresa ao ordenado mínimo na empresa. Talvez assim houvesse menos desigualdade. E mais justiça.

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