Uma acusação entre o desconforto e o alívio

É bom constatar que certas coisas que nunca entendemos poderão ser finalmente esclarecidas no lugar devido: na barra dos tribunais

Carlos César tem razão quando diz que a acusação de José Sócrates é “desconfortável” para os portugueses. Por um momento, as quase quatro mil páginas do despacho do Ministério Público retiram o país do mundo desenvolvido e transportam-no para lugares onde a cleptocracia é norma e a falta de escrúpulos na gestão da coisa pública banal. Mas se por acaso dissesse que, para lá do desconforto, a acusação de 31 crimes a José Sócrates é também um alívio, o líder parlamentar do PS permaneceria no campo justo da razão. Porque, depois de prisões duvidosas, de prazos sucessivamente dilatados e sucessivas fugas de informação para a imprensa, um despacho de arquivamento da Operação Marquês seria um terrível descrédito para a Justiça portuguesa.

Se José Sócrates foi ou não autor dos crimes de que é acusado só os tribunais poderão dizer. Mas há neste momento crucial pelo menos duas constatações relevantes para percebermos o país que fomos e definir o país que não queremos voltar a ser. A primeira é que, num regime aberto e democrático, foi possível a construção de uma rede de influências até às mais altas instâncias do Estado. A segunda é que os braços dessa rede puderam estender-se pelas sedes do poder público, pela banca e pelas empresas sem que houvesse qualquer mecanismo de controlo capaz de as detectar e eliminar em tempo útil. Hoje, dispomos ao menos de pistas para perceber melhor certos episódios como o da OPA da Sonae ou nomeações de gente sem currículo para a administração da Caixa. Mas na era Sócrates coisas assim estranhas puderam ser feitas sem que houvesse alguém no Governo, na imprensa, na oposição ou na procuradoria capaz de as deslindar.

Perante essa facilidade de movimentos e essa debilidade de escrutínio que nos remetem para uma irrevogável sensação de fragilidade e de desprotecção, a actuação do Ministério Público merece elogio. Porque nos mostra que ainda há energia no regime e vitalidade na separação de poderes para averiguar o que parece estar fora da lei. Os danos que essas práticas causaram vão demorar anos a ser compensados, mas é bom que a Justiça se disponha a levantar o tapete para se averiguar quanto ao lixo, em vez de se acomodar à ilusão de uma falsa normalidade. Sócrates, Salgado e os outros acusados são inocentes à face da lei. Mas depois do período das trevas que simbolizam é bom constatar que certas coisas que nunca entendemos poderão ser finalmente esclarecidas no lugar devido: na barra dos tribunais. 

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