Todas as famílias se parecem… com carrascos

As peças O Pelicano, de August Strindberg, e Tatuagem, de Dea Loher, compõem no Teatro Carlos Alberto, no Porto, o ciclo Retrato de Família. Dois dramas separados no tempo, mas com a mesma carga letal.

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Projecto Retrato de Família - O Pelicano de August Strindberg com encenação de Manuel Tur Paulo Pimenta
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Projecto Retrato de Família - O Pelicano de August Strindberg com encenação de Manuel Tur Paulo Pimenta
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Projecto Retrato de Família - O Pelicano de August Strindberg com encenação de Manuel Tur Paulo Pimenta
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Projecto Retrato de Família - O Pelicano de August Strindberg com encenação de Manuel Tur Paulo Pimenta
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Projecto Retrato de Família - O Pelicano de August Strindberg com encenação de Manuel Tur Paulo Pimenta
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Projecto Retrato de Família - Tatuagem, de Dea Loher com encenação de Manuel Tur, Paulo Pimenta
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Projecto Retrato de Família - Tatuagem, de Dea Loher com encenação de Manuel Tur, Paulo Pimenta
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Projecto Retrato de Família - Tatuagem, de Dea Loher com encenação de Manuel Tur, Paulo Pimenta
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Projecto Retrato de Família - Tatuagem, de Dea Loher com encenação de Manuel Tur, Paulo Pimenta
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Projecto Retrato de Família - Tatuagem, de Dea Loher com encenação de Manuel Tur, Paulo Pimenta
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Projecto Retrato de Família - Tatuagem, de Dea Loher com encenação de Manuel Tur, Paulo Pimenta
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Projecto Retrato de Família - Tatuagem, de Dea Loher com encenação de Manuel Tur, Paulo Pimenta
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Projecto Retrato de Família - Tatuagem, de Dea Loher com encenação de Manuel Tur, Paulo Pimenta

O Teatro Carlos Alberto (TeCA), no Porto, acolhe a partir desta quinta-feira a primeira fase de um ciclo dramático que tem como título genérico Retrato de Família. Esta co-produção do colectivo A Turma com o Teatro Nacional São João inclui, neste momento inicial, O Pelicano, de August Strindberg (em cena de 12 a 21 de Outubro), e Tatuagem, de Dea Loher (que sobe ao palco entre 25 e 29 de Outubro). Encenados por Manuel Tur, estes dois dramas, separados no tempo por oito décadas e meia, põem em cena conflitos familiares com a mesma carga letal, perscrutam a condição humana com lentes igualmente severas – apesar de inevitáveis divergências estéticas e temporais.

A convergência entre as peças de Strindberg e Loher poderá, em primeira instância, parecer improvável. Para Manuel Tur, passa tudo pelo que chama, contornando o receio do cliché, “coincidências felizes”. Esses acasos juntaram duas obras aproximáveis – pela violência crua e impiedosa no tratamento da matéria familiar –, mas que, lembra Tur, “funcionam claramente em X”. Onde o autor sueco explora a perfídia da mãe opressora, a dramaturga alemã elege a crueldade de um pai abominável.

O ciclo começou a ser pensado pelos anos de 2010-11. Mas, ainda antes de se solidificar com a estrutura que veio a ter, A Turma estreou-se com Loucos por Amor, de Sam Shepard, pelo que relações conturbadas em sede familiar não eram novidade para o grupo. E eis que surge o primeiro dos acasos venturosos de que nos fala o encenador. A ideia original de Tur combinava, inicialmente, duas peças alemãs: Tatuagem e Cara de Fogo, de Marius von Mayenburg. Foi Nuno Carinhas, lembra Manuel Tur, quem o levou a reler O Pelicano e a repensar a sua opção original. Ao conjugar O Pelicano e Tatuagem, encenador e actores constataram “um jogo de espelhos, com cruzamentos, intersecções, lados opostos do muro, das barreiras” que, gradualmente, foram impondo uma aproximação entre dois universos dramáticos aparentemente tão díspares.

Os acasos e coincidências, recorda Tur, não se ficaram por aí. Lendo em contraponto a peça de Strindberg e Cara de Fogo, o encenador reflecte: “Mayenburg só pode ter lido O Pelicano”. O mesmo pirómano e o mesmo desfecho em “processo de redenção pelo fogo”. O trabalho com Cara de Fogo revelaria, porém, que a melhor solução se situava algures entre a dramatização e a leitura encenada, já que parte da energia se dissipava à medida que as falas se reproduziam no trabalho cénico. Motivo pelo qual O Pelicano se foi impondo como escolha mais viável – ainda que o colectivo tivesse ponderado a hipótese de incluir Cara de Fogo como espécie de acrescento apenas lido, entre as duas peças, ideia que viria a ser abandonada.

Idealmente, revela-nos o encenador, O Pelicano e Tatuagem seriam levadas à cena no mesmo dia. A ideia original era mesmo que os actores fossem os mesmos nas duas peças. Contudo, tal só sucedeu – por razões de agenda e pelo desgaste causado pela representação de papéis de tal densidade e entrega dramática – com o papel da mãe, nas duas peças, desempenhado pela actriz Ângela Marques.

Independentemente de não serem representadas no mesmo dia, o encenador defende veementemente que este O Pelicano e esta Tatuagem são mutuamente indissociáveis, e que um não fará sentido sem o outro. Ambas as peças se implicam mutuamente. O próprio espaço cénico reforça essa opção de princípio e esse conjunto de escolhas estéticas. Manuel Tur explica que a cena é deliberadamente a mesma em O Pelicano e na Tatuagem. “Há um certo magnetismo que faz com que as personagens sejam atraídas para este mesmo espaço cénico”, nota.

Desde o início foi decidido que nada se poderia retirar, na transposição da peça de Strindberg para a de Loher: que apenas se poderiam fazer acrescentos pontuais ao palco. É precisamente isso que se passa. De uma para outra, apenas um espelho se adiciona – onde as personagens se olham sem reconhecerem o reflexo da sua própria ignomínia, como explica o encenador –, apenas a luminotecnia sofre alterações: “No Pelicano temos uma luz que é quase contínua, que nos vai criando uma cena cada vez mais gelada, mais vazia, abandonada. Na Tatuagem, a luz é claramente uma luz segmentada, que vai cortando e dividindo.”

Num exercício que o encenador aprecia fazer, se os nomes se trocassem, se porventura alguns tiques epocais se esbatessem, e certos gestos mais típicos de um tempo desaparecessem da peça, quem não veria no Pelicano uma obra actual? Uma crueza como a de Strindberg, propõe o encenador, é “muito fora do seu tempo”, ao abordar o dossier família “tão abruptamente, tão bruscamente”. É de qualquer tempo, da nossa como de qualquer outra época. Do mesmo modo, avança Tur, há muito quem tenha dificuldade em perceber em Tatuagem uma “escrita feminina”, e não falta quem ache inimaginável que uma mulher possa submeter outras mulheres à violência pela qual passam, no palco, as personagens femininas de Loher.

O ciclo Retrato de Família terá prossecução possível em 2018, com um elenco de peças que está ainda por definir por completo. No entanto, o encenador revela que várias obras povoam os interesses e as preocupações do colectivo há mais de cinco anos. Uma dessas peças é a adaptação cénica que David Eldridge fez de A Festa, de Thomas Vinterberg, uma das que Manuel Tur mais gostaria de levar ao palco com A Turma. Esta poderá constituir toda a segunda fase do projecto, ou articular-se com outras peças.

Uma outra possibilidade se desenha, no entanto. Como terceiro momento do ciclo, o encenador contempla a hipótese de se constituir uma fase dedicada apenas a monólogos. Um deles será, com grande probabilidade, Stabat Mater, de Antonio Tarantino, uma peça que há muito interessa encenador e actores. Outra será uma das grandes surpresas que A Turma reserva. O escritor brasileiro Bernardo Carvalho tem actualmente em mãos a escrita de um monólogo original especialmente dedicado ao colectivo. Manuel Tur, que teve há escassos dias acesso a um primeiro esboço do texto – cujo título provisório é Pátria, e que se centra na conturbada figura de um pai centro-europeu –, está claramente entusiasmado com o projecto.

O encenador fala de um “acto de euforia” para descrever o arco que une as pontas soltas deste ciclo que começou por um momento de coincidência, passou por um trabalho exaustivo de construção e começa a tomar rumo. Duas peças de câmara darão lugar a um peça maior, para regressar às peças menores – sístole e diástole de um coração alvoroçado.

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