Modos de reagir quando um homem apedreja uma pata

A partir de um episódio ocorrido consigo em Ghent, a artista australiana Nicola Gunn ergue um inteligente e provocador espectáculo em torno de uma questão moral. Piece for Person and Ghetto Blaster está em cena de quinta a sábado na Culturgest, em Lisboa.

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GREGORY LORENZUTTI

Podia ser um dilema moral proposto num exercício destinado a colocar opiniões em confronto. Ou daqueles que surgem em entrevistas de emprego só para testar se o proponente seria capaz de desenvencilhar-se – mais do que para aferir qualquer fibra de valores. Mas foi uma situação real. E aconteceu à autora australiana Nicola Gunn quando, numa tarde de 2014, de visita à cidade belga de Ghent, passeava por um lago da cidade e deu de caras com um homem que arremessava pedras a uma pata ocupada a chocar sossegadamente os seus ovos no meio do lago. Nicola abordou-o, gritou com ele, percebeu que era tão belga quanto ela e acabou por desistir de lhe apelar ao bom senso, retirando-se com uma história para contar.

Piece for Person and Ghetto Blaster, em cena de quinta a sábado na Culturgest, em Lisboa, nasceu desse episódio, mas sobretudo de ter revisitado repetidas vezes a cena na sua cabeça, pensando nas diferentes abordagens que poderia ter adoptado. “Porque intervim de uma forma particular, pensei muito sobre isso”, conta ao PÚBLICO. “Mas mais do que a acção desse homem, foi sobretudo a minha reacção que me interessou, pela forma como amplifiquei a violência e a agressividade. Não me comportei de uma forma razoável e racional, e o gozo que retirei da confrontação deixou-me intrigada.”

Ao remoer a sua própria actuação e esse prazer tangente à violência, Nicola Gunn resolveu questionar alguns amigos sobre fantasias que envolvessem situações agressivas, crimes que pudessem imaginar-se a cometer contra outros seres que os tivessem tratado de uma forma menos aceitável. A maioria negou tais pensamentos, mas era impossível não se focar nesses impulsos e na linha que, ao ser transposta, poderá atirar alguém para um buraco sem fundo. “Tinha uma agente imobiliária que odiava, e fantasiava em agarrar num molho de chaves e arrastá-lo pelo BMW dela", confessa Nicola. "Era extremamente visual. Nunca o faria, mas comecei a pensar nessa linha que traçamos, imaginando o que haverá do outro lado.”

Não era de todo evidente que esta narrativa pudesse dar origem a um espectáculo. Acontece que no decurso de um worshop intensivo numa prisão dirigido pela artista Marina Abramovic, Nicola Gunn andava já a ruminar a ideia e a pensar como poderia ser transposta para palco. Como Abramovic não sabia muito bem o que fazer com a australiana e com aquele esboço de proposta, demasiado colado a uma prática teatral que não encaixava tanto no contexto de performance ali trabalhado pela artista sérvia, concordaram numa apresentação da ideia para o espectáculo, presenciada pelos participantes no workshop e aberta ao público em geral.

“Convidei para a sessão uma perita em resolução de conflitos de Sydney e conversámos em palco sobre a situação”, recorda Nicola. “Ela propôs-me uma série de formas alternativas de lidar e de olhar a situação, falámos sobre terapia narrativa ou algo do género, que me incitava a criar outras possíveis narrativas. Ela sugeriu, por exemplo, que aquele homem podia ser tão pobre que roubar os ovos da pata seria preferível a assaltar uma loja. Essa hipótese era uma treta, nunca acreditaria nisso, mas percebi o que me estava a dizer.” Às tantas, para sua surpresa, o público começou a envolver-se na conversa, a fazer as suas próprias sugestões, a questioná-la porque não tinha agido assim ou assado. E logo ali, perante a simplicidade do momento, percebeu que tinha encontrado o espectáculo.

Valores morais

Sozinha em palco – na verdade, acompanhada de uma boom box, ou não se chamasse a peça Piece for Person and Ghetto Blaster –, Nicola Gunn vai contando a sua história e divergindo várias vezes no relato, pulando para outros temas e outras considerações, como se pensasse em voz alta diante do público. Na verdade, tenta recuperar aquilo em que pensava naquela tarde de 2014, replicando o contexto original do episódio em Ghent. E questiona-se, por exemplo, até que ponto terá forçado a situação para nela recolher o material para um futuro espectáculo – “porque foi muito bizarro”, confessa, “foi como se a situação me caísse no colo”.

Em fundo, enquanto dança o tempo todo – movida tanto pela adrenalina do confronto quanto pela insinuação de que “a violência é uma acção desnecessária” –, corre sempre algo que é absolutamente fundamental na perspectiva de Gunn: os diferentes sistemas de valores. Recordemos que o indivíduo que apedreja a pata – à frente dos seus filhos, encarregados de lhe arranjar mais munições – é tão belga quanto Nicola. É possivelmente um imigrante. E a sua abordagem levanta toda uma série de questões quase intermináveis: é a pretensa superioridade moral que a move?, é o facto de saber que o homem está em território estranho?, é a simples falta de empatia e compreensão entre dois desconhecidos com valores distintos?, etc. “É interessante como esta situação pode falar para um palco global muito maior, para forças militares muito maiores”, ri-se.

Esse enquadramento é crucial porque também Gunn é uma estrangeira impondo os seus valores morais. Se tivesse acontecido na Austrália, “um país muito auto-regulamentado, em que toda a gente adora dizer aos outros como devem comportar-se e em que todos gostam de policiar os vizinhos”, é quase certo que teria agido da mesma maneira. Mas é também mais duvidoso que tivesse levado o episódio para o palco.

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